Entre os hansenianos

Com a naturalidade de quem nada está fazendo de extraordinário, irmã Gaudenzina Aricocchi, italiana, missionária da Consolata, relata seus 44 anos de trabalho na Libéria.

Por Gaudenzina Aricocchi *
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Irmã Gaudenzina no Centro de Reabilitação com hanseniana cega.

Parti para a Libéria no início de 1963. Na Itália, contemplando a primavera exuberante, em um período de descanso, muitas vezes passam pela minha mente, como numa seqüência cinematográfica, as imagens dos longos anos de Missão. Reencontro muitas pessoas... Mas, sobretudo, revejo as muitas situações precárias vividas com o querido povo liberiano. Com pesar, lembro a dureza dos 14 anos de guerra, que destruíram a alegria e a beleza interior dos nossos jovens e que custou a vida de muitos deles. Anos que fizeram de quase toda a população liberiana uma multidão refugiada, obrigada a viver na miséria e na humilhação.

Centro de Reabilitação

Em 1998 fui transferida à Missão de Ganta. Era urgente a reabertura do Leprosy/ T.B. Rehabilitation Center - Leprosário e Centro de Reabilitação para Tuberculosos. Lembro-me que ao chegar, encontramos quase tudo destruído. Por causa da guerra, o hospital estava abandonado há quatro anos. Funcionários e doentes - aqueles que estavam em condições de se locomover -, todos haviam se refugiado na vizinha Guiné. O local fora saqueado várias vezes. As camas e os móveis de madeira do hospital e das 52 pequenas casas dos doentes foram usados pelos soldados como lenha para cozinhar sua parca comida. Apenas sobraram as camas e mesas de ferro. À destruição da construção e à precariedade das instalações, juntava-se a falta de víveres para os grupos de refugiados que começavam a regressar, porque a guerra parecia caminhar para o fim. A reabertura do Centro foi muito difícil. Tivemos que enfrentar as dificuldades do ambiente abandonado e o pior, com pouquíssimos recursos financeiros e de pessoas para o trabalho. Faltava de tudo: colchões, cobertas, cadeiras de roda, mesas, armários, remédios, comida, material de higiene para os doentes e utensílios para limpar o terreno e começar a plantar alguma coisa; além das paredes do edifício que deviam ser completamente reconstruídas.

Diante de tal situação, tínhamos tudo para desanimar. Mas, isso não aconteceu. A força Daquele que chama e envia estava viva dentro de nós. Arregaçamos as mangas e com os poucos pacientes que estavam em condições de trabalhar, começamos a reconstrução. O mais urgente era procurar meios para melhorar a alimentação. Logo em seguida, iniciamos um projeto de piscicultura e um terceiro de criação de suínos; projetos que continuam ainda hoje e são uma bênção para aquele povo. Passado algum tempo era gratificante ver os doentes ordenados, limpos e, sobretudo, contentes. Também as suas casas muito simples, iam se tornando acolhedoras e funcionais.

A guerrilha

Em 2003, quando tudo parecia correr bem, Ganta viu-se tomada pela guerrilha. Os combates sucederam-se por cinco longos meses. Mais um calvário, especialmente para os doentes. Junto com a população, todos nós fugimos. No hospital  ficou apenas um enfermeiro. Os filhos dos hansenianos foram obrigados a empunhar as armas, para defenderem suas casas. A esses bravos jovens, se deve a sobrevivência dos pacientes que ficaram. Enfrentando perigos de toda sorte, eles vinham até o campo dos refugiados onde estávamos, para nos trazerem notícias do Centro de Reabilitação e depois retornavam, levando às costas, os mantimentos que podíamos lhes dar. Faziam o longo percurso de ida e retorno, à noite, na escuridão, para não serem apanhados pelos guerrilheiros. Eles nos diziam: “No Centro os doentes rezam noite e dia pedindo a Deus por vocês, irmãs, e por todo povo refugiado”. Com certeza, foi pelas fervorosas orações deles, que Deus sensibilizou o coração dos soldados para não saquearem o hospital e respeitarem os doentes.

O retorno dos exilados

Junto com o povo, com o coração agradecido a Deus, retornamos. Diante de tudo o que havíamos sofrido, ninguém ousava se queixar. Tínhamos saúde e muita fé que Ele estava caminhando conosco. Uma vez mais iniciamos a reestruturação de tudo, agora não tão difícil quanto da primeira vez. Muitas vezes, no silêncio da reflexão, percebo-me pensando em todas as pessoas, homens, mulheres e crianças que conheci no Centro de Reabilitação. Muitos já foram à Casa do Pai. Entre eles, não posso deixar de lembrar Kekula, cego e com os membros superiores corroídos pela doença. Minutos antes de morrer, ele agradeceu a Deus pelo grande dom da vida. Entre os que ainda hoje vivem no Centro de Ganta, com muita gratidão e reconhecimento, lembro o senhor Hope, responsável da Vila, que teve amputados os membros inferiores, analfabeto, mas cheio de sabedoria. A ele eu me dirigia muitas vezes, para ouvir seu parecer, antes de tomar decisões nos momentos de tensão e de guerra.

É inacreditável

E como não lembrar John Blimah, ex-hanseniano e atual Diretor do Centro? Quando morreu sua avó, também hanseniana, o corpo dela foi queimado conforme a tradição, para que o espírito que a mantinha doente fosse destruído. Logo, os parentes e moradores da Vila, perceberam que John, o neto de dez anos, havia contraído a doença. Obrigaram os pais a construírem para ele uma cabana na floresta, com a ordem de se aproximarem somente para levar-lhe a comida. E assim foi feito. Um dia, o pequeno John queimou-se no pé e começou a chorar muito. Um missionário anglicano que casualmente passava por aquele caminho, ouvindo o choro aproximou-se da choupana e logo entendeu a triste situação do menino. Levou o pequeno consigo, tratou-lhe a doença e o fez estudar. John Blimah tornou-se um excelente enfermeiro, com especialização na cura da hanseníase. A sua grande experiência tornou-o particularmente sensível e com dedicação total aos hansenianos, a quem infunde muita segurança. Como Diretor do Centro, ele é um belíssimo exemplo de extrema abnegação e competência profissional e humana.

As verdadeiras alegrias

Quando regressar à Libéria, provavelmente, não voltarei mais a trabalhar em Ganta, mas levarei no coração o testemunho de generosidade e coragem das minhas colegas missionárias: irmãs Ana Rita e Eugênia Paola, com quem partilhei anos difíceis, porém, inesquecíveis. Com sincera gratidão, afeto e admiração sempre lembrarei o grupo dos sanitaristas, os pacientes que se alternam no hospital, e uma vez recuperados, voltam para suas casas. Levarei comigo a lembrança especial dos pacientes que a doença obriga a se locomover numa cadeira de rodas ou com muletas; os que são cegos e que aprendem a se deslocar sozinhos, orientados pelo tato, pelos passos e pela voz de quem deles se aproxima. Para todos esses irmãos e irmãs, o Centro de Ganta é a sua segunda casa. Ali eles se sentem acolhidos, amados e bem tratados. É por esta razão que continuamente agradecem e louvam a Deus por sentirem-se cuidados por Ele, através das pessoas: enfermeiros, voluntários, missionárias e benfeitores que dos diversos países do mundo enviam sua solidariedade, que os ajuda a viver a doença com dignidade. Estas e muitas outras são as grandes alegrias, das quais o coração de uma missionária transborda.

* Gaudenzina Aricocchi é missionária na Libéria.
(CC BY 3.0 BR)