Resgatados e reintegrados

Missionária da Consolata, Raquel Soria é de nacionalidade argentina. Ao ser enviada em missão, após ter freqüentado um Curso de Assistência Social, iniciou um trabalho no Centro de Recuperação - tipo Fundação CASA - em Nairóbi, capital do Quênia.

Por Raquel Soria *

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Estou trabalhando há pouco mais de quatro anos no Youth Corretive Center - Centro de Recuperação de Nairóbi, Quênia que abriga adolescentes e jovens infratores, dos 14 aos 21 anos. Passo com eles cinco dias por semana, orientando-os num caminho de conhecimento pessoal, através de oficinas de estudo, onde são aprofundados e debatidos temas por eles próprios solicitados: violência doméstica, alcoolismo, tráfico e uso de drogas, aborto... Reservo as segundas e terças-feiras, para o atendimento pessoal dos que desejam ter uma conversa comigo. Como esses jovens têm necessidade de falar! Eles querem ser acolhidos e escutados sem pré-julgamentos. Eles precisam se libertar de tantas experiências negativas que carregam em seu coração. Aos domingos celebramos o Dia do Senhor, colocando em oração tudo o que foi estudado, refletido e debatido durante a semana. Isto muito os ajuda a fazerem a integração entre a própria vida, a oração e a fé. As celebrações que fazemos são ecumênicas, pois eles pertencem a várias denominações e credos religiosos. Há também um bom número de muçulmanos. Eles juntam-se em grupos de acordo com sua fé e, orientados por mim, preparam uma parte da oração. É interessante notar como cada grupo tem seu jeito diferenciado de se comunicar com Deus.

A reintegração

Desde que comecei a freqüentar o Centro, fui percebendo que ao se aproximar o término do tempo de reclusão, os jovens ficavam inquietos e angustiados. Ao perguntar-lhes o motivo, eles confessavam sentimentos de medo por terem que enfrentar a sociedade, sem as mínimas condições. A quase totalidade provinha de famílias muito pobres; alguns com mulher e filhos para sustentar. Os que eram órfãos e analfabetos, não tinham para onde ir. Para mim eram sempre momentos de grande sofrimento. Sofria, porque sabia que para muitos, sair dali era retornar ao crime, ser novamente preso e ter a pena dobrada pela reincidência. Eu ficava pensando: deve haver uma saída. Impossível que todas as portas se fechem diante de um problema tão grave!

Deus tarda, mas não falha

Não é assim que reza o dito popular? Pois bem, em fevereiro de 2004, fui convidada a participar de um Congresso Internacional, que se realizaria naquele mesmo Instituto onde eu havia feito o curso de Assistência Social. O tema a ser abordado seria: desenvolvimento sustentável. Eu disse a mim mesma: esta é uma ótima chance. Aceitei e fui para lá levando no coração uma grande esperança... Não só tive a oportunidade de expor o meu trabalho com os jovens do Centro de Recuperação, como também pude dividir o meu sonho de criar uma estrutura que desse a eles novas oportunidades para uma integração na sociedade. Ao término da minha apresentação, vi os membros do Koinonia Advisory Reseach Development Service - Serviço de Aconselhamento, Pesquisa e Desenvolvimento, presentes ao Congresso, virem em minha direção interessando-se pelo projeto. Após ouvirem os detalhes colocaram-me imediatamente em contato com a Cáritas italiana. Terminado o Congresso, iniciamos logo um estudo mais detalhado da obra e a elaboração do programa. Ao se espalhar a notícia, a iniciativa recebeu o apoio total dos capelães carcerários e em seguida, da Conferência Episcopal do Quênia, que se prontificou a doar o terreno ao lado do Centro de Recuperação. Tudo estava caminhando bem demais, quando apareceu um senão. Algumas pessoas influentes começaram a discordar da idéia de se construir uma outra estrutura, só para ex-detentos. Diante do impasse, foi dada a sugestão de reformular o objetivo, acrescentando algo mais. Os jovens acompanhados na sua recuperação serviriam de estímulo aos que ainda estavam presos, através de algumas atividades neste sentido. Deveriam mostrar com sua conduta, também ao povo, que a recuperação é possível quando se tem uma nova chance, o apoio e vontade de mudar. Com esse acréscimo a idéia foi aceita e as obras começaram. Ainda durante a construção, o programa de formação e reintegração já contava com três jovens, Erick, Leewel e Michael, numa pequena casa alugada.

A realização do sonho

Em abril de 2006 a nova casa abriu as portas. Seu nome: Saint Joseph Cafasso Consolation House - Casa de Consolação São José Cafasso, o grande apóstolo dos encarcerados. A Casa tinha a capacidade para hospedar 10 jovens, com possibilidade de ser ampliada. Desde o início, na admissão dos candidatos, foi dada a prioridade aos jovens órfãos, filhos de mãe solteira e de pais separados e filhos de famílias muito pobres. Depois de serem selecionados, os jovens prestes a receberem a liberdade, já começam a ser preparados para seu ingresso na Casa de Consolação. Nesse ínterim, um assistente social visita as famílias ou o parente mais próximo, porque o apoio deles é de suma importância. Ao sair da Casa de Consolação com um certificado profissional, eles são orientados a voltar para a região de origem e, ao menos no início, ajudar as próprias famílias. Para tanto, além da formação humana, psicológica, moral e espiritual, a Casa de Consolação fornece também um reforço escolar e alguns cursos profissionalizantes: mecânica, marcenaria, eletrônica e artesanato em couro.

Apostando nos frutos

Erick, órfão de pais vítimas da Aids, e que vivia na rua quando foi preso, especializou-se em mecânica, voltou para sua região e com o nosso apoio começou a trabalhar. Leewel, filho de mãe solteira, depois de ter conseguido o certificado de conclusão do curso básico, também cursou mecânica. Edward fez o curso de cabeleireiro e montou o seu próprio negócio. O órfão James, que viera para a cidade em busca de trabalho para ajudar a família e que acabou sendo preso, cumprida a pena especializou-se em trabalhos artesanais em couro. Mesmo tendo plena consciência de que estes sucessos são apenas uma gota de água num oceano imenso de jovens abandonados e sem perspectivas de futuro, temos certeza que a Casa de Consolação São José Cafasso está fazendo a sua parte, abrindo caminhos e horizontes, antes considerados inatingíveis.

Prioridade: a pessoa

Eu continuo sonhando. Sonho com um sistema carcerário que dê mais atenção à pessoa dos detidos, de modo especial aos que estão doentes física e psiquicamente, e que se descubram maneiras de poder recuperar tantas vidas excluídas e marginalizadas pela sociedade. Eu sonho com muitos Centros de Recuperação, onde a dignidade humana seja reconhecida, respeitada e defendida; onde as pessoas tenham chances de se redimirem dos próprios erros sem se sentirem a escória. Vivo este serviço como parte integrante da minha vocação missionária. Estou profundamente convencida que nesta missão, o Senhor me pede para ser um instrumento seu, para mostrar a estes jovens a sua ternura e compaixão, amando-os com um coração de mãe. ν

* Raquel Soria é missionária da Consolata no Quênia.
(CC BY 3.0 BR)