O despertar de uma missionária

Deus se faz atual no contato com as pessoas.

Por Noeli Domingos Bueno *
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Ir. Noeli participando do Círio Fluvial no Rio Guamá, Belém, PA. (Foto: Arquivo Pessoal)

Voltei atrás na minha história - que já totaliza 39 anos - para tentar descobrir de onde veio a influência da minha vocação. E penso ter descoberto. Em minha família há mistura de raças, e isto deve ter gerado em mim o sonho missionário. Sou gaúcha de São Martinho, região noroeste do Rio Grande do Sul, conhecida também como ‘Região Celeiro’. Sim, celeiro variado: de soja, trigo, uva, gado e por que não, também de vocações...

A região comportava, na época, a presença de famílias tradicionalmente religiosas. A maioria delas era de descendência alemã, polonesa e italiana. Minhas irmãs e eu éramos conhecidas como as “polaquinhas”, filhas de Dona Polaca, pois minha mãe era filha de mãe polonesa e pai paraguaio; e meu pai, é de descendência espanhola, portuguesa e negra – uma mistura e tanto. Lembro que minha mãe, muito religiosa, rezava pelas vocações; mas penso que era mais para os filhos e filhas dos vizinhos, e não os dela propriamente. No entanto, passava para nós o respeito às várias raças e de modo especial, ao povo negro. Nos ensinava que o racismo não era conforme o amor de Deus, pois Ele não tem cor e ama todos os seus filhos e filhas, incondicionalmente. Na época, a gente percebia muito preconceito contra a raça negra. Mas, na escola, as professoras ao falarem da África e dos negros demonstravam muito esse respeito; e eu captava tudo isso. Como adolescente do interior, não imaginava que isso poderia ter alguma ligação com a missão e a vida missionária. Eu nunca havia saído de São Martinho e também não sabia o que era viver longe de casa. Mas, a ideia da Missão já estava no meu coração, sem saber bem o que seria.

A reação da família

Um dia resolvi expressar à minha mãe o desejo de ser uma ‘Religiosa Palotina’ - era só esta a congregação que eu conhecia - e ela levou um grande susto. Disse-me logo que isto seria impossível, devido a nossa situação financeira. Estávamos atravessando um período muito difícil pela falta de chuvas, e dependíamos da lavoura para viver. Mas, depois de um pouco de chantagem de minha parte, ela consentiu, com a condição, que eu não pedisse dinheiro em casa. Como é que eu iria me arranjar sozinha?

Deus foi abrindo as portas

Em 1983, com 15 anos, através de uma amiga chamada Margarete, conheci as Missionárias da Consolata. Comecei a me interessar sobre como proceder para ser uma delas; e o entusiasmo tomou conta de mim. Decidi entrar para a Congregação. Na novena em preparação ao Natal daquele ano, no encontro de famílias, o texto falava do trabalho missionário entre os africanos e os mais pobres. Não tive dúvidas; era ali que Deus estava me querendo. A primeira missionária da Consolata que conheci foi a Ir. Geralda Chiarelli, da Comunidade de Horizontina, Rio Grande do Sul. Deus a colocou no meu caminho para orientar-me vocacionalmente. No ano de 1985 fui morar com as Irmãs no Colégio Cristo Rei, que elas dirigiam naquela cidade. Cursei o Magistério Regional. As missionárias, sabendo da minha situação deram-me um trabalho extra: cuidar da capela delas - e assim no final de cada mês, me davam uma ajuda financeira para cobrir minhas despesas. Quanta conversa tive com Jesus naquele período! Ali eu chorei. Ali repeti muitas vezes a minha história. Ali me entreguei por inteira a Ele. Fiquei naquela casa três anos e meio, estudando e trabalhando e sendo acompanhada no discernimento vocacional.

Missão em Belém

Após vários anos de experiência missionária em Roraima, trabalhando entre os índios Yanomami, fui enviada a Belém do Pará. O sonho de formar uma Equipe Missionária mista nasceu de uma reflexão feita pela diocese de Turim, Itália, com os padres Fidei Donum. O cardeal de Turim, dom Severino Poletto atendeu o pedido dos bispos da arquidiocese de Belém, na época dom Carlos Verzeletti e dom Vicente Zicco. Sabendo eles de um pedido dos jesuítas para deixarem a Paróquia Santo Inácio de Loyola, fizeram a proposta aos missionários italianos. E em dezembro de 2005 a comunidade foi assumida oficialmente por uma equipe missionária mista, composta por padres, religiosas, leigos e leigas. O cardeal de Turim entrou em contato com as Missionárias da Consolata e lhes propôs o desafio: ele pedia quatro irmãs para completarem a equipe que deveria atuar em Icuí e Guajará, em Ananindeua, no Pará.

As missionárias, após estudarem a proposta, aceitaram. Parte da equipe chegou direto de Turim, composta pelos padres Pierantonio e Benigno (já falecido), diácono Franco e sua esposa Loredana, e o casal de leigos Fabrizio e Laura, que chegou em terras paraenses no dia 26 de dezembro de 2005. Em abril de 2006 chegaram as irmãs da Consolata: Carmelita Semeraro (hoje Provincial da Região Amazônica), Maria da Silva (portuguesa) e eu. Dois meses depois veio também Ir. Maria Isabel Yeruna (Argentina), que por motivo de saúde precisou retornar para a sua terra; vindo então fazer parte da comunidade Ir. Orsolina D’acquarica (italiana). Mais tarde veio o padre Marino Gabrielli que já estivera por 17 anos em missão na Guatemala.

A Paróquia Santo Inácio de Loyola está localizada no bairro de Icuí, município de Ananindeua, com mais de 80.000 habitantes, que antes pertencia à maior ocupação da América Latina denominada PAAR (Pará, Amapá, Amazonas e Rondônia). Um bairro com seus problemas, como falta de infraestrutura, esgoto a céu aberto e alto índice de desemprego, o que provoca muita ociosidade entre as pessoas. As moradias são precárias, além de ser um lugar considerado muito violento. A morte de jovens é quase diária, devida ao desemprego e ao tráfico de drogas. Apesar de tudo, o povo de Icuí é acolhedor e amigo, capaz de receber bem os missionários e missionárias, que apesar de falarem outra língua, logo são ajudados a se sentirem em casa.

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Encontro no Dia Nacional da Juventude 2008, comunidade São Marcos, Paróquia Sto. Inácio de Loyola, Icuí, Pará. (Foto: Pastoral da Juventude)

O meu “sim” diário

Como vemos, a vida missionária é uma constante novidade. Deus se faz sempre novo e atual no contato com as pessoas, tentando responder aos desafios de todo dia. E esse ardor sempre novo é alimentado nos momentos fortes de intimidade com o Senhor, na oração comunitária e pessoal, e nas reuniões semanais com a equipe missionária. O trabalho que fazemos em equipe mista integrada por sacerdotes, um diácono, irmãs religiosas e leigos missionários, me faz sentir que Deus é sempre a novidade e acredita em cada ser humano, para construir algo no seu projeto de amor. No momento eu assessoro a Pastoral do Dízimo da Paróquia, e acompanho o trabalho com os jovens. Acredito que ainda hoje Deus continua chamando os seus missionários. Precisamos acreditar que ele não chama os capacitados, mas capacita aqueles que chama, e nenhum poderá sentir-se fora deste Reino de amor, pois “ninguém é tão pobre que não tenha nada para dar e ninguém é tão rico que nada possa receber”. ν

* Noeli Domingos Bueno é missionária da Consolata.
(CC BY 3.0 BR)