“Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e meu Pai o amará, e viremos para ele, e faremos nele morada” (Jo 14,23). Há algo mais lido do que esta revelação?
Por Melania Lessa
(Domingo passado 26/09/21, dia Nacional da Bíblia, a Irmã Melania, MC partilhou o texto abaixo em encontro das Religiosas do Setor Mandaqui, Regional Santana - SP da CRB)
Padre Anthony de Melo, SJ, nos conta uma deliciosa história: Um jovem procurou o seu Mestre que vivia rodeado de discípulos, todos muito felizes. Intrigado perguntou: “Por que aqui todos são felizes, menos eu? ”. O Mestre respondeu-lhe: “Porque todos aprenderam a ver as coisas boas e belas ao seu redor! ”. O jovem, depois de pensar um pouco, perguntou novamente: “E como conseguem ver coisas boas e belas ao seu redor se há tanto coisa ruim acontecendo? ”. Depois de olhá-lo longamente, o Mestre respondeu: “É porque aprenderam a ver o bonito e o belo dentro de si mesmos”.
“Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e meu Pai o amará, e viremos para ele, e faremos nele morada” (Jo 14,23). Há algo mais lido do que esta revelação?
Hoje somos convidados a contemplar a vida de algumas mulheres Bíblicas. Elas não só fizeram a experiência da beleza e força da Palavra de Deus que se fez humana para poder chegar a nós através dos sentidos, mas também a transformaram em Palavra divina. Deixaram-se transformar, empoderar, santificar pela Palavra. São mulheres que têm um poder Presença fascinante. Vivem intensamente o momento presente a a sua vida se torna presente para elas, para o seu povo e para nós também!
Hoje queremos dialogar com essas nossas Mães e irmãs na fé... Diálogo. Uma palavra carregada de sentidos...
A inspiração do tema nos vem da Campanha da Fraternidade Ecumênica 2021 e também de uma das principais temáticas da 58 ª Assembleia Geral dos Bispos do Brasil. Queremos que nossas comunidades sejam “Casa da Palavra”. A Palavra da mulher Bíblica traz a força da ternura e da profecia de que tanto precisamos.
Depois de uma breve introdução queremos nos encontrar com duas mulheres do A.T, uma mulher dos Evangelhos, uma da Igreja primitiva e, concluir com a Mãe do diálogo, Maria.
INTRODUÇÃO
Há 164 mulheres nomeadas na Bíblia. Destas mulheres bíblicas apenas 93 têm suas palavras registradas. Às vezes uma só frase. Somente 49 das que falam são nomeadas.
Suas palavras registradas são um pouco mais de 1% do total de palavras da Bíblia. (Do livro: Bible Women – All their words and why they matter, September 2014). Há, naturalmente, centenas de outras mulheres, sem nome e sem rosto, que falam!
Num primeiro momento estes dados nos causam espanto. Depois o espanto se transforma em perguntas. No fim se torna silêncio que, segundo afirmação do teólogo ortodoxo, Jean Yves Leloup, é a fonte da palavra, portanto a fonte do diálogo.
Achei que delimitando o tema- Mulheres Bíblicas e o diálogo seria mais fácil. Ilusão. Elas falam pouco, mas suas palavras são uma fonte borbulhante.... Impossível tratar esta dimensão em poucos minutos. Vamos apenas fazer alguns breves acenos.
A semântica hebraica, como nos diz a Irmã Ana Roy, nos ajuda a entender melhor a palavra “mulher”. De fato, Gn. 1 apresenta a mulher “NEGEVAH”, a que Deus criou como o varão, “à sua própria imagem”. Literalmente, “Negevah” significa a “aberta”, espaço para acolher, como o útero a hospedar a vida. “Negevah” tem raiz comum com o verbo “dizer”, portanto, espaço para a eclosão da palavra. Apelo à diaconia da comunicação, serviço propriamente feminino. (Roy, Ana, Ser Mulher, mística-ética-simbologia-praxe, CRB, 1990)
AGAR – A PRIMEIRA TEÓLOGA, A PRIMEIRA MÍSTICA!
Escolhi a história de Agar porque me oportunizou uma das experiências mais ricas de minha vida. Estava na metade do meu segundo ano na Missão da Etiópia, África. Iniciava, depois de muitas tentativas sem sucesso, um encontro com um grupo de mulheres católicas da Comunidade de Bazaquu, situada no meio de uma grande floresta. Conseguimos que os homens se reunissem com o missionário em um outro lugar, porque quando estes estavam presentes, as mulheres não podiam falar.
Eram cerca de 40 mulheres, todas analfabetas, com exceção de uma jovem mãe solteira, cerca de 17 anos. Uma jovem cujo futuro fora fechado pela gravidez inesperada.
Meu vocabulário de língua Oromo era muito limitado, portanto desenhei vários cartazes com a história de Agar. A jovem ajudava-me com a leitura do texto bíblico. Todas a reconheceram como irmã no sofrimento, mas, o mais importante, todas fizeram um encontro com o “Deus que vê e ouve” de uma maneira inacreditável. Várias mulheres aquele dia usaram a palavra. E foi a partir deste encontro que nasceu, devagarzinho, a participação ativa das mulheres na comunidade eclesial, o projeto de alfabetização e microcrédito que depois se alastrou pelos nossos quatro centros missionários da Etiópia... Fizemos uma experiência da força da Palavra de Deus e da força da palavra da Mulher também... As mulheres não sabiam ler a Palavra, mas deixaram-se ler pela Palavra. Um diálogo no sentido pleno: desafia, transforma, energiza, une, consola, faz mudar e crescer.
A história de Agar se encontra no livro do Gênesis, nos capítulos 16 e 21. É uma mulher escrava, negra, usada, descartada, muito silenciosa, e uma das nossas matriarcas. Sobretudo, uma mulher que conheceu a Deus pessoalmente, vivendo uma experiência de teofania como Abraão e Moisés. Ela conhece de perto o Deus que vê e ouve, que se interessa por nós!
Durante toda a trama de Sara para que ela gere um filho à Abraão até sua fuga para o deserto, devido os maus tratos de Sara, não pronuncia uma palavra sequer. O Anjo do Senhor a encontra junto a uma fonte no deserto e a chama pelo nome, em direta oposição à sua experiência prévia, a sem nome (Gn 16,8). O versículo continua: “Agar, escrava de Sarai, de onde você vem e para onde vai?» As perguntas não se referem apenas à situação em que se encontra naquele momento. Elas refletem seu passado e seu futuro. Agar responde a verdade, mas não completamente. Responde de onde está vindo, mas não para onde vai. Mantendo o foco no passado, Agar confessa que não vê possibilidades quanto ao futuro. A resposta que o anjo lhe dá nos desconcerta: «Volte para sua e seja submissa a ela». Parece uma ordem insensível e opressiva. Os versículos que seguem, porém, mostram o plano de Deus para o seu futuro. Ela não retorna indefesa ou para o mesmo status quo. Ela retorna com promessas recebidas direta e pessoalmente de Deus.: 10 Eu farei a descendência de você tão numerosa que ninguém poderá contar.
O significado do nome ‘Ismael’ (Deus ouve) nos força a focar em Agar: “Javé ouviu sua aflição”. Quando Agar é removida fisicamente daqueles que controlam cada aspecto de sua vida, a sua identidade pessoal e sua capacidade de relação aparecem nitidamente. Como uma mulher socialmente marginalizada, sua mais profunda relação é com Deus. Deus a vê e escuta, mas ela também o vê e escuta. Neste sentido os versículos 13e 14 impressionam.
Agar invocou o nome de Javé, que lhe havia falado, e disse: «Tu és o Deus que-me-vê, pois eu vi Aquele que -me vê». 14 Por isso, esse poço chama-se «Poço daquele que vive e me vê», e se encontra entre Cades e Barad. Eis o que significa um encontro dialogal com a Palavra!
De fato, o trecho que acabamos de contemplar tem características do verdadeiro diálogo: uso da palavra para fazer circular sentidos e significados, saber ouvir, manter uma postura dialógica, ampliar os horizontes, superar experiências limitativas e fortalecer a relação. Nossa Matriarca Agar, apesar de todas as contradições e sofrimentos, dialoga com o próprio criador.
Sua experiência de conflitos e humilhação não para por aí. No capítulo 21,8-21, nós a encontramos novamente em direção ao deserto, expulsa agora pelo próprio Abraão. Com o filho, uma vasilha de couro com água e um pouco de pão. Atravessar o deserto assim? Inconcebível! (14-16). Um odre de água poderia conter em torno de 11 l. Quando esta acaba, Agar deixa o filho debaixo de uma árvore. Pensa no que pode acontecer e chora. Também Ismael chora, pois, o versículo a seguir diz que Deus ouviu a voz do rapaz, a oração de Ismael, e fala à sua mãe, prometendo uma bênção inesperada (17,19) e, mais uma vez, abre os olhos de Agar que vê um poço. O simbolismo é muito rico. Dialogar não é só ouvir e falar: é também chorar, gritar, ver melhor e fazer a experiência de que Deus é o primeiro interessado em nossa trajetória humana. Agar, estrangeira, escrava, negra, nossa primeira teóloga e mística, continua muito perto de nós, não é mesmo?
- MIRIAM, A PRIMEIRA PROFETIZA!
Escolhi encontrar outra mulher, Miriã ou Miriam, irmã de Moisés e Aarão. Viveu a experiência do isolamento social e é a primeira profetiza. Suas palavras e sua ação profética tem muito a nos dizer. Sua história aparece no livro do Êxodo. Nós a encontramos pela primeira vez, Ex 2, 1-10, ainda sem nome, de uma certa forma, ‘dando à luz’, uma nova oportunidade de vida, ao seu irmão Moisés à beira do rio Nilo. Foi ali que iniciou a arte do diálogo, servindo como mediadora entre a filha de Faraó e sua mãe.
Aparece, a seguir, com o seu nome, na passagem do Mar Vermelho (Ex 15,20-21). Chamada ‘Profeta Mirim, irmã de Aarão, ela lidera todas as mulheres hebreias com cantos, danças e tamborins, louvando a Deus pela libertação tão desejada. O texto salienta que Miriam entoava para elas: “Cantem a Javé porque grandemente se enalteceu: ele atirou ao mar carros e cavalos” (Ex 15,21). É justamente durante este ato de louvor a Deus liderado por Míriam que a Torá se refere a ela como a ha-Naviá - a profetisa. É a primeira vez que a Torá concede o título de profetisa a uma mulher. O hino de louvor, comparado ao de Moisés, é sumário, mas vai ao essencial: Deus libertador!
Depois do episódio do Mar Vermelho, Miriam aparece ainda durante a travessia do deserto. Acompanhada pelo seu irmão Aarão, Miriam desafia a autoridade profética de Moisés. “Será que Javé falou somente a Moisés? Não falou a nós também”? (Num 2,1-2). Conhecemos o desfecho. Numa reunião entre os três líderes, Miriam é punida por Deus com a lepra. Por intercessão de Aarão a Moisés e deste ao Senhor, depois de ficar em isolamento social por 7 dias, fora do acampamento, é novamente admitida no grupo (Nm 12,3-15).
Miriam compreende que a liderança abraça diversas vozes, masculinas e femininas, mas o fato da narrativa afirmar que somente Miriam é castigada, a oficialidade pós exílica visa restringir a função profética somente aos homens. Miriam permanece uma mulher condenada, um aviso para as próximas gerações (Dt 24,8-9)
Depois de ser punida, ela nunca mais fala e desaparece totalmente até o anúncio de sua morte e sepultamento (Nm 20, 1).
Algumas ênfases são necessárias:
- O texto é claro “Isolaram Miriam durante 7 dias fora do acampamento, e o povo não saiu daquele lugar até Miriam ser reintegrada” (Nm 12,15). Uma imagem preciosa. Uma comunidade que sente e expressa sua solidariedade e cuidado e não a abandona! Não se pode calar uma voz profética. É o diálogo na sua forma mais contundente.
- Em segundo lugar, ao contrário de muitas mulheres bíblicas, Miriam nunca é chamada de esposa ou mãe. Ela não tem esposo e nem filhos. A tradição judaica não pode tolerar a sua vocação de mulher solteira.... Para nós consagradas, é muito significativo este fato!
- Anete Roese, Pastora da Igreja de Confissão Luterana no Brasil em Belo Horizonte, professora na PUC/MG, assessora do CEBI, entre outros, no seu livro, Bibliodrama, a arte de interpretar textos sagrados, Editora Sinodal, 2007, desconstrói o imaginário negativo suscitado pelo processo de Miriam. São palavras textuais da autora: “O que aconteceu com Miriã? Parece que aconteceu algo como uma reação psicossomática. Miriã adoece repentinamente num contexto de usurpação de seu poder pessoal, de sua autoestima, de seu valor diante do povo, seu reconhecimento diante de Deus. Um sofrimento grande revelou-se através de sua pele. E ela precisa de um tempo para se restabelecer – tempo de solidariedade do povo que não segue viagem sem ela. Além daquelas questões contextuais de conflito de poder, há outras questões a serem consideradas. A doença de Miriã deve ser compreendida dentro do contexto das complicadas condições que o povo enfrentava no deserto: fome e sede, doenças, insatisfação e aflição, conflitos dentro da comunidade e para fora dela. Certamente o serviço de Miriã junto a esse povo afetado por tantas dificuldades fragilizou sua saúde também. Ademais, Miriã suportou o conflito em silêncio a fim de evitar uma crise maior entre o povo” (p. 131)
É impossível não perceber que esta história tem profundas semelhanças com os dias de hoje. Ao entrar em contato com a força e a fragilidade de Miriam, o texto se torna terapêutico e nos proporciona luz, vitalidade, cura e amadurecimento. Alarga nossos horizontes.
Entremos agora no Novo Testamento. Quando folheamos os Evangelhos, encontramos várias mulheres que revelam uma invejável capacidade de relacionamento com Jesus. Um relacionamento baseado em boas conversas, diálogo respeitoso, em ouvir e responder e até debate político social. Depois de quase 2000 anos elas tem muito a nos dizer.
- A MULHER SAMARITANA: PRIMEIRO DIÁLOGO ECUMÊNICO
Iniciemos com a Mulher Samaritana em Jo 4. Depois do encontro com Nicodemos que foi procurar Jesus à noite, Jo 3,1-12, Jesus deixa a Judeia e vai, mais uma vez, à Galileia, passando pela Samaria. “Era preciso passar pela Samaria. (v 4). Lá, à beira do Poço de Jacó, em pleno meio dia, Jesus se encontra com a Mulher Samaritana. Apesar da animosidade entre judeus e samaritanos, Jesus lhe pede água. Ela fica estupefata diante de tal pedido e o explicita. Jesus e a samaritana sem nome eram duas pessoas diferentes e historicamente antagônicas, cada uma das quais considerava que a outra se distanciava drasticamente da antiga fé de Israel. Em suma, suas famílias eram inimigas social, religiosa e politicamente falando.
Os dois conhecem bem suas tradições religiosas, mas Jesus, aos poucos, numa conversa franca e envolvente, a conduz ao próprio interior e a um novo modo de ver, livre e profundo. Conhecemos bem o diálogo. Ela não só o reconhece como profeta, mas descobre também sua própria dignidade, a fonte da espiritualidade e da vida.... É o primeiro debate cristológico!
Ela volta para sua aldeia e chama seus vizinhos para acreditarem em Jesus também. A primeira mulher a se engajar no diálogo ecumênico torna-se a primeira missionária cristã.
No site dos Estudos Bíblicos de Israel há um estudo muito sugestivo sobre o texto: Reconsiderando a Mulher samaritana. (Dr. Eli Lizorkin-Eyzenberg e Lisa Loden). A mulher samaritana é geralmente retratada em nossos estudos bíblicos como uma mulher de má reputação. Enquanto evitava as pessoas por causa de sua profunda vergonha por sua vida imoral, ela aparentemente tropeçou em Jesus descansando em um poço. No entanto, a maioria das pessoas que leem esta história fica com uma pergunta incômoda. Como essa mulher pôde receber uma resposta extremamente positiva de seus vizinhos de aldeia, quando os chamou para largar tudo e vir com ela para encontrar um homem judeu que ela mesma acabara de conhecer? Algo não bate.
- LÍDIA DE TIATIRA: ESTRANGEIRA, COMERCIANTE, FUNDADORA DA IGREJA DE FILIPOS
Lucas, o autor de Atos, registra que o primeiro encontro missionário de Paulo em Filipos não foi com um macedônio, mas com um grupo de mulheres, à beira de um rio. O grupo incluía Lidia, uma mulher originária de Tiatira. Lydia é mencionada em apenas alguns versículos dos Atos dos Apóstolos. Em Atos 16: 14a, somos informados a respeito do nome, profissão (comerciante de púrpura, naturalidade (Tiatira)e sua fé ("adoradora de Deus"). O texto informa ainda que tinha uma grande capacidade de escuta, tinha um coração aberto e prestava muita atenção ao que Paulo dizia. É mulher convincente, pois, após ser batizada, toda a sua família também o é.
Isso significa que era uma mulher importante. As mulheres, no mundo romano do primeiro século, como Lídia, "estavam entrando na esfera pública nos negócios e como patrocinadoras, e impactaram a igreja primitiva também nessas funções."
Uma mulher próspera, toma a iniciativa, aliás usa palavras persuasivas, para que Paulo e Timóteo fiquem em sua casa; “Se vocês me consideram fiel ao Senhor, venham ficar em minha casa” (15). É sua única fala. Não consulta pai, marido ou irmão. Parece ser proprietária e responsável pela sua casa e se torna um farol luminoso no movimento de Jesus
Em Atos 16,40, Lídia acolhe novamente os Apóstolos em sua casa após a libertação da prisão em Filipos(Atos 16:40)
CASA, PODER E GÊNERO – O QUE UM TEM A VER COM O OUTRO? É um interessante estudo sobre a casa como ambiente de empoderamento para mulheres, a partir da leitura do texto de Atos dos Apóstolos 16, 11-15 (Dilma de Oliveira Leão – mestra em Ciência do Desporto, doutoranda em Ciência Política, Especialista em Leitura Popular da Bíblia – DABAR VI. Professora, membro da coordenação do CEBI-PA, representante no Conselho Amazônico de Igrejas Cristãs – CAIC.). A autora nos apresenta a casa como espaço de transformação que influencia todo um sistema. Acho o estudo interessante para nós durante este tempo de pandemia. O poder da mulher está só na casa? Da casa se espraia para o social, econômico, político e religioso? Qual o significado de nossas casas religiosas hoje? Quem hospedamos?
MARIA DE NAZARÉ, A MULHER DO DIÁLOGO.
Para concluir esta partilha, convido a todos e todas para contemplarmos o capítulo 1,26-56 de do Evangelho de Lucas. O texto é como se fosse um drama em três atos: Maria ocupa o centro da cena humana. Parece que o olhar de Deus se concentra nela que se torna a Casa da Palavra.
Seu diálogo discursivo mais instigante é o que se encontra na primeira cena, Lc 1,26-38. Ela escuta à desconcertante proposta de Deus, pondera, questiona e se rende ao chamado de Deus com seu Sim de Serva do Senhor. No final o Anjo Gabriel se retira, mas em Maria e, consequentemente, no mundo, se desencadeiam ações que mudam tudo... Diálogo místico!
No segundo ato, uma das primeiras ações de Maria, a vemos partindo apressadamente para Ain Karin (Lc 1, 39-44). Ain Karin significa “Casa das Vinhas”. Interessante, se notarmos que “Belém” significa “casa do Pão”. Pão e Vinho... Eucaristia, Ação de Graças... Diálogo sororal.
Vamos todos lá no alpendre da Casa de Isabel... onde as duas mulheres se encontram. A chegada de Maria na casa de Isabel, de fato, propicia um verdadeiro encontro litúrgico: acolhida, saudação, manifestação de alegria, partilha de experiências, bênção, anúncio profético.
Não sabemos qual foi a saudação de Maria, mas esta teve um efeito tão poderoso que Isabel ficou cheia do Espírito Santo, e começou a profetizar... “A criança pulou de alegria em seu ventre, e Isabel ficou cheia do Espírito Santo (1,41)
João Batista, no seio de Isabel, também responde à presença do Messias no seio de Maria. Isabel interpreta o movimento do filho nela como motivado pela alegria. E por que não? (Lc 2,10). A reação de Isabel não é, de forma nenhuma, silenciosa. O texto fala de voz bem alta. “Ela gritou (anaphoneo) com um forte (megas) grito (krauge). É mais do que uma saudação barulhenta, alegre; é uma saudação espiritual e cheia do Espírito; é mais até do que uma partilha entre duas mulheres agraciadas, particularmente abençoadas; é profecia!
Isabel abençoa, primeiramente, Maria (Bendita és tu entre as mulheres) e depois abençoa o filho que Maria carrega no sei: “Bendito é o fruto do teu ventre”. É um encontro entre duas mulheres abençoadas e abençoadoras...
Em geral, ao contemplar este acontecimento, enfatiza-se o serviço de Maria. Por que não contemplar a beleza da partilha de vida entre duas mulheres agraciadas por Deus? Oxalá nossas comunidades se tornem espaços sagrados de partilha da ação misericordiosa de Deus em nossas vidas!
“Feliz, abençoada aquela que acreditou... (1, 45) Isabel compreende a grandeza da fé de Maria. Zacarias havia duvidado. Ficou mudo. Maria acreditou. Não fica muda, mas proclama, através do Magnificat, aos quatro ventos, a misericórdia do Senhor.
Lc 1,46-56 é o terceiro ato. O Magnificat de Maria é como um caleidoscópio. Depende de como giramos os cristais coloridos, nós temos várias reconfigurações que suscita maravilha, literalmente: ó!
O Magnificat de Maria é como um tapete original tecido com fios da urdidura e da trama, criando um desenho único. A urdidura do tapete tecido por Maria faz memória dos textos do Torá, dos Profetas, do Canto de alegria e gratidão de Ana, mãe de Samuel (1Sam 2,1-10)
A trama do tapete tecido por Maria celebra a ação criativa de Deus que acompanha a luta diária dos primeiros cristãos, os pobres (anawin), tanto no sentido material como espiritual. Vê Deus agindo na história dos pequenos e magnífica sua ação.
O Magnificat de Maria como uma canção, ou seja, é um dos quatro hinos da coleção de cantos dos primeiros cristãos. O hino de gratidão de Maria, por exemplo, ecoa a canção de Ana, mãe do profeta Samuel (I Sam 1, 1-18; 2,1-10), mas também ecoa o hino de Judite (Jud 16,1-17), a canção da matriarca Rebeca, esposa de Jacó (Gn 30,13). O seu canto expressa também nossos versos, cantos ou choros. “Todas as gerações me chamarão ‘bem-aventurada’ (Lc 1, 48 b).
O Magnificat de Maria é como uma caminhada. Além de ser um belíssimo tapete tecido com os fios de todos os tempos e lugares e de um hino que interpreta todas as melodias e vozes da nossa história, o Magnificat de Maria é, mais profundamente, uma caminhada que continua até hoje com nossos passos...
O canto é a Teologia bíblica em movimento. É o canto do peregrino, desde o início da caminhada de fé de Abraão, até o fim dos tempos. O Magnificat é um slogan revolucionário chamando todos os que creem para a caminhada da solidariedade. É um canto de libertação, louvando a Deus que caminha conosco.
O Magnificat de Maria, por fim, é um grito de esperança: é o resumo de todas as esperanças de Israel e, ao mesmo tempo, uma expressão condensada da fé, da esperança e do amor do novo povo de Deus.
Enfim, Maria usa todas as possibilidades da palavra para testemunhar o evento mais humanizador de nossa história: Emanuel, Deus conosco. Diálogo profético!
“O Magnificat é o mais esplêndido grito de alegria que saiu do peito humano... Maria Santíssima pensa apenas na sua pequenez e se exalta em Deus. Prediz a sua glória, mas nisto vê apenas o triunfo de Deus”. (Allamano)
Melania Lessa é missionária da Consolata em SP