Vida Consagrada: Encarnação da Misericórdia do Pai na Igreja e no mundo

Palestra de dom João Braz Aviz no Encontro Regional da Conferência dos Religiosos do Brasil Regional Paraná, em Curitiba, dias 2 e 3 de março de 2016.

Por João Braz Cardeal de Aviz

CONFERÊNCIA DOS RELIGIOSOS DO BRASIL
REGIONAL DO PARANÁ
E N C O N T R O R E G I O N A L
PARA: . Coordenadores Provinciais
. Coordenadores de Comunidades
. Coordenadores da Formação
. Coordenadores de Núcleos da CRB
. Coordenadores de Sub-Núcleos da CRB
CURITIBA – Santuário da Divina Misericórdia
(Estrada do Ganchinho, 570 – Umbará)
(Dias 02 e 03 de março de 2016)

VIDA CONSAGRADA – ENCARNAÇĀO DA MISERICÓRDIA DO PAI
NA IGREJA E NO MUNDO

Introdução
Sinto novamente uma grande alegria em voltar ao Paraná para encontrar vocês, meus irmãos, mulheres e homens consagrados. Agradeço aos coordenadores da Conferência dos Religiosos do Paraná por este novo convite. Junto com vocês quero aproveitar a graça desse momento em que apenas encerramos o ano da vida consagrada vivido de modo muito intenso por nós e por boa parte da Igreja em todo o mundo.

dombrazaviz1Está em andamento um novo aprofundamento de nossa consagração que consolida o essencial de nossa vocação e, ao mesmo tempo, nos situa no novo momento da história humana. Pelo que nós pudemos experimentar nos contatos com consagrados e consagradas dos cinco continentes, trata-se de um momento especial de graça, concedido a este ano da vida consagrada que encerramos no dia 02 de fevereiro de 2016. Seguramente foi isso que moveu vocês e a mim para estarmos juntos de novo.

Abraço com carinho cada um e cada uma, especialmente os que enfrentaram maiores dificuldades para estar aqui e continuarmos juntos o caminho. Um abraço particular vai aos coordenadores e voluntários que preparam com paixão estes momentos.

Trago uma saudação calorosa de Dom José Carballo, Arcebispo Secretário, e das 40 pessoas que trabalham conosco todos os dias na Congregação em Roma. No ano de 2015 trabalhamos com muita paixão para realizar o programa do ano da vida consagrada aprovado pelo Papa Francisco e, graças a Deus, o realizamos na íntegra e com uma grande participação em Roma e nos cinco continentes.

Saudando o Papa Francisco na Eucaristia de encerramento na Basílica de São Pedro no dia 02 de fevereiro de 2016 eu coloquei em evidência duas experiências que nos marcaram: a grande beleza e a grande exigência presentes na vida consagrada e agora endereçadas à experiência da misericórdia. Permitam que eu retome o texto:

“Encerramos este ano da vida consagrada pensado por Deus, para nós, através do senhor, Papa Francisco, no clima, que já estamos vivendo, do Jubileu Extraordinário da Misericórdia. Isto nos parece uma coincidência de grande beleza e de muita exigência.

Sim, de grande beleza, porque, guiados pela Palavra de Deus e pelas palavras e pelos gestos concretos que o senhor nos recordou neste ano, nós consagrados e consagradas de todo o mundo, pudemos voltar com mais intensidade ao primeiro e único Amor que nos escolheu e acompanhou nos poucos ou muitos anos de nossa consagração ao Senhor até agora. Percebemos agora que este é o selo que nos ajudará a não nos afastarmos da fidelidade sem limites da misericórdia do Senhor para conosco nos próximos anos. Obrigado, Papa Francisco, por estar tão próximo de nós e por nos confirmar em nosso caminho.

Sim, de grande beleza é este momento, porque somos testemunhas do que o Senhor realizou entre os consagrados das várias vocações em todo o mundo. São muitas as irmãs e os irmãos consagrados que começaram de novo a caminhar com alegria e com esperança, seguros da proximidade do Senhor neste momento da história humana tão rica de mudanças e de novas exigências.

Sim, ainda uma vez este é um momento de grande beleza, porque o senhor, Papa Francisco, nos reconduziu ao cuidado do seguimento de Jesus e do seguimento do nosso carisma de fundação, através dos fundadores e das fundadoras. Como nos alegra ter compreendido melhor que a nossa característica como discípulos de Jesus é a profecia, isto é, testemunhar a mesma forma de vida de Jesus na castidade, pobreza e obediência. Tomamos maior consciência que especialmente agora, neste tempo, precisamos percorrer a nossa estrada tendo como característica principal o ser homens e mulheres “especialistas de comunhão”, começando essa experiência desde o interior de nossas comunidades de consagrados. Atualmente já vemos em muitas de nossas comunidades os primeiros frutos viçosos de uma vida renovada de irmãos e irmãs em família e, quem sabe por esta mesma razão vemos despontar os brotos de novas vocações. Jesus, de fato, nos garantiu que disto, isto é, do amor recíproco entre nós, os outros reconhecerão que somos seus discípulos. Assim, muitos entre nós, tendo vencido a tentação da auto-referencialidade, estamos prontos a partir, a sair, para ir em missão onde o Senhor nos quiser chamar.

Papa Francisco, o senhor pode contar conosco! Somos conscientes de nossa fragilidade e das exigências que o Senhor Jesus manifesta no Evangelho, mas queremos ser fiéis.

Papa Francisco, contamos sempre com sua proximidade e com sua orientação, afim de que o caminho de Jesus, seu amor e misericórdia sejam completos em nós.
Obrigado Papa Francisco”.

Agora, como legado desse ano, fica-nos em modo particular a Carta Apostólica do Papa Francisco do dia 21 de novembro de 2014, que nos orientou e definiu o programa por nós realizado, mas ainda por realizar. Nela encontramos os objetivos que perseguimos e que continuam válidos: 1. Olhar o passado com gratidão; 2. Viver o presente com paixão; 3. Abraçar o futuro com esperança. Nela o Papa manifesta as cinco coisas que ele espera da vida consagrada e que não podemos esquecer: a alegria, “despertar o mundo”; “experientes em comunhão”; interrogar-se sobre o que Deus e a humanidade de hoje estão pedindo. A estes pontos o Papa acrescentou: coragem.

Atenta a estes pontos assinalados pelo Papa, nossa Congregação em Roma, no final do ano de 2014, identificou três odres novos da vida consagrada nos quais nós queremos colocar o vinho novo que é Jesus, o Evangelho, seja para situar a vocação dos consagrados e das consagradas no momento atual da história, seja para formar os jovens consagrados, que o Senhor continua a chamar, à luz do seguimento de Jesus e da fidelidade aos fundadores e às fundadoras, naquilo que é o essencial dos carismas com os quais eles e elas enriqueceram a Igreja.

Eis os três odres novos:
1. A vida fraterna em comunidade;
2. A formação contínua e inicial;
3. A autoridade, a obediência e o uso dos bens (dinheiro e propriedades).

Sem descuidar de todos os valores próprios da vida consagrada, estes tres odres poderão favorecer uma renovação e uma revitalização que sentimos necessárias. Sem perder o patrimônio rico e diversificado do seguimento de Jesus Cristo e dos fundadores e das fundadoras no passado, faz-se necessária uma passagem corajosa e sem titubeios para a espiritualidade de comunhão, para um assumir de modo maduro e livre as duas notas co-essenciais da Igreja (hierarquia e carismas), além de situar definitivamente a vida consagrada como parte do povo de Deus, junto com todos os batizados e os ministros ordenados. Isto favorecerá a retomada generosa da missão lá onde a Igreja precisa e o carisma nos situa.

Mas não é só isso, assim nos qualificaremos melhor para as experiências novas da interculturalidade, da comunhão profunda entre os carismas, que são características desse momento e que já estão em ato em muitas das nossas comunidades. E’ o que em Roma e nas viagens que fizemos pelos cinco continentes, Dom Carballo, o Arcebispo Secretário, eu, e alguns outros membros do Dicastério, pudemos observar em muitos lugares e em várias formas de vocações consagradas.

Em nosso caminho daqui para a frente poderão nos ajudar vários documentos que o Papa Francisco e a Congregação (CIVCSVA) já nos apresentaram e outros que estão sendo preparados:

Do Papa Francisco: Carta Apostólica por ocasião do Ano da Vida Consagrada. Em preparação: a Constituição Apostólica sobre a Vida Contemplativa.

Do Dicastério:
. Gestão dos Bens Eclesiásticos dos Institutos de Vida Consagrada e das Sociedades de Vida Apostólica a Serviço do humanum e da Missão na Igreja.
. Três Cartas Circulares: Alegrai-vos; Escrutai; Contemplai. Em preparação: Ide.
. Identidade e Missão do Religioso Irmão na Igreja.
Em preparação: Mutuae Relationes.

Somam-se naturalmente a esses documentos os aprofundamentos, as avaliações e as conclusões verificadas nos inúmeros encontros, assembleias, simpósios, etc., realizados nos vários países e cuja riqueza aos poucos se fará sentir.

Agora sentimos, juntamente com o Papa Francisco, que o Ano da Vida Consagrada insere naturalmente os consagrados (as) de todo o mundo no Jubileu Extraordinário da Misericórdia. Com toda a Igreja também nós consagrados somos chamados a experimentar e a distribuir a misericórdia de Deus com nova consciência. Este nosso encontro tem justamente como tema central: Vida Consagrada – Encarnação da Misericórdia do Pai na Igreja e no Mundo. Por isso, tendo como centro do caminho a misericórdia do Pai, da qual nós já estamos revestidos, e, desejosos de sermos misericordiosos como o Pai nesse momento da história humana como consagrados e consagradas, percorreremos, nestes dois dias, o seguinte itinerário:

1. Os Cinco Pontos do Papa Francisco sobre a Vida Consagrada Hoje
2. A Vida Consagrada a 50 Anos do Concílio Vaticano II: Evangelho, Profecia e Esperança
3. Vinho Novo em Odres Novos: Três Odres Novos a Serem Cuidados Hoje na Vida Consagrada
3.1. Vida Fraterna em Comunidade;
3.2. Formação Contínua e Inicial;
3.3. Experiência do Poder e Uso do Dinheiro e das Propriedades
4. O Mistério da Ssma. Trindade como Fundamento da Antropologia Cristã
4.1. Vida Consagrada na Medida de Deus e na Medida do Homem e da Mulher de Hoje
4.2. Deus é Amor (1Jo 4, 8.16). O Homem e a Mulher também são Amor (Gen1,27)
4.3. Tornar-se Pequeno, como Deus, para Ser Amor, como Deus (Flp 2, 5-11)

1. Os Cinco Pontos do Papa Francisco sobre a Vida Consagrada Hoje

“Que espero eu, em particular, deste Ano de graça da vida consagrada?

1. Que seja sempre verdade aquilo que eu disse uma vez: «Onde estão os religiosos, há alegria». Somos chamados a experimentar e mostrar que Deus é capaz de preencher o nosso coração e fazer-nos felizes sem necessidade de procurar noutro lugar a nossa felicidade, que a autêntica fraternidade vivida nas nossas comunidades alimenta a nossa alegria, que a nossa entrega total ao serviço da Igreja, das famílias, dos jovens, dos idosos, dos pobres nos realiza como pessoas e dá plenitude à nossa vida.

Que entre nós não se vejam rostos tristes, pessoas desgostosas e insatisfeitas, porque «um seguimento triste é um triste seguimento». Também nós, como todos os outros homens e mulheres, sentimos dificuldades, noites do espírito, desilusões, doenças, declínio das forças devido à velhice. Mas, nisto mesmo, deveremos encontrar a «perfeita alegria», aprender a reconhecer o rosto de Cristo, que em tudo Se fez semelhante a nós e, consequentemente, sentir a alegria de saber que somos semelhantes a

Ele que, por nosso amor, não Se recusou a sofrer a cruz.
Numa sociedade que ostenta o culto da eficiência, da saúde, do sucesso e que marginaliza os pobres e exclui os «perdedores», podemos testemunhar, através da nossa vida, a verdade destas palavras da Escritura: «Quando sou fraco, então é que sou forte» (2 Cor 12, 10).

Bem podemos aplicar à vida consagrada aquilo que escrevi na Exortação apostólica Evangelii Gaudium, citando uma homilia de Bento XVI: «A Igreja não cresce por proselitismo, mas por atração» (n. 14). É verdade! A vida consagrada não cresce, se organizarmos belas campanhas vocacionais, mas se as jovens e os jovens que nos encontram se sentirem atraídos por nós, se nos virem homens e mulheres felizes! De igual forma, a eficácia apostólica da vida consagrada não depende da eficiência e da força dos seus meios. É a vossa vida que deve falar, uma vida da qual transparece a alegria e a beleza de viver o Evangelho e seguir a Cristo.

O que disse aos Movimentos eclesiais, na passada Vigília de Pentecostes, repito-o aqui para vós também: «Fundamentalmente, o valor da Igreja é viver o Evangelho e dar testemunho da nossa fé. A Igreja é sal da terra, é luz do mundo; é chamada a tornar presente na sociedade o fermento do Reino de Deus; e fá-lo, antes de mais nada, por meio do seu testemunho: o testemunho do amor fraterno, da solidariedade, da partilha» (18 de Maio de 2013).

2. Espero que «desperteis o mundo», porque a nota característica da vida consagrada é a profecia. Como disse aos Superiores Gerais, «a radicalidade evangélica não é própria só dos religiosos: é pedida a todos. Mas os religiosos seguem o Senhor de uma maneira especial, de modo profético». Esta é a prioridade que agora se requer: «ser profetas que testemunham como viveu Jesus nesta terra (...). Um religioso não deve jamais renunciar à profecia» (29 de Novembro de 2013).

O profeta recebe de Deus a capacidade de perscrutar a história em que vive e interpretar os acontecimentos: é como uma sentinela que vigia durante a noite e sabe quando chega a aurora (cf. Is 21, 11-12). Conhece a Deus e conhece os homens e as mulheres, seus irmãos e irmãs. É capaz de discernimento e também de denunciar o mal do pecado e as injustiças, porque é livre, não deve responder a outros senhores que não seja a Deus, não tem outros interesses além dos de Deus. Habitualmente o profeta está da parte dos pobres e indefesos, porque sabe que o próprio Deus está da parte deles.

Deste modo espero que saibais, sem vos perder em vãs «utopias», criar «outros lugares» onde se viva a lógica evangélica do dom, da fraternidade, do acolhimento da diversidade, do amor recíproco. Mosteiros, comunidades, centros de espiritualidade, cidadelas, escolas, hospitais, casas-família e todos aqueles lugares que a caridade e a criatividade carismática fizeram nascer – e ainda farão nascer, com nova criatividade –, devem tornar-se cada vez mais o fermento para uma sociedade inspirada no Evangelho, a «cidade sobre o monte» que manifesta a verdade e a força das palavras de Jesus.

Às vezes, como aconteceu com Elias e Jonas, pode vir a tentação de fugir, de subtrair-se ao dever de profeta, porque é demasiado exigente, porque se está cansado, desiludido com os resultados. Mas o profeta sabe que nunca está sozinho. Também a nós, como fez a Jeremias, Deus assegura: «Não terás medo (...), pois Eu estou contigo para te livrar» (Jr 1, 8).

3. Os religiosos e as religiosas, como todas as outras pessoas consagradas, são chamados a ser «peritos em comunhão». Assim, espero que a «espiritualidade da comunhão», indicada por São João Paulo II, se torne realidade e que vós estejais na vanguarda abraçando «o grande desafio que nos espera» neste novo milênio: «fazer da Igreja a casa e a escola da comunhão». Estou certo de que, neste Ano, trabalhareis a sério para que o ideal de fraternidade perseguido pelos Fundadores e pelas Fundadoras cresça, nos mais diversos níveis, como que em círculos concêntricos.

A comunhão é praticada, antes de mais nada, dentro das respectivas comunidades do Instituto. A este respeito, convido-vos a reler frequentes intervenções minhas onde não me canso de repetir que críticas, bisbilhotices, invejas, ciúmes, antagonismos são comportamentos que não têm direito de habitar nas nossas casas. Mas, posta esta premissa, o caminho da caridade que se abre diante de nós é quase infinito, porque se trata de buscar a aceitação e a solicitude recíprocas, praticar a comunhão dos bens materiais e espirituais, a correção fraterna, o respeito pelas pessoas mais frágeis... É «a “mística” de viver juntos» que faz da nossa vida «uma peregrinação sagrada». Tendo em conta que as nossas comunidades se tornam cada vez mais internacionais, devemos questionar-nos também sobre o relacionamento entre as pessoas de culturas diferentes. Como consentir a cada um de se exprimir, ser acolhido com os seus dons específicos, tornar-se plenamente corresponsável?

Além disso, espero que cresça a comunhão entre os membros dos diferentes Institutos. Não poderia este Ano ser ocasião de sair, com maior coragem, das fronteiras do próprio Instituto para se elaborar em conjunto, a nível local e global, projetos comuns de formação, de evangelização, de intervenções sociais? Poder-se-á assim oferecer, de forma mais eficaz, um real testemunho profético. A comunhão e o encontro entre diferentes carismas e vocações é um caminho de esperança. Ninguém constrói o futuro isolando-se, nem contando apenas com as próprias forças, mas reconhecendo-se na verdade de uma comunhão que sempre se abre ao encontro, ao diálogo, à escuta, à ajuda mútua e nos preserva da doença da auto-referencialidade.

Ao mesmo tempo, a vida consagrada é chamada a procurar uma sinergia sincera entre todas as vocações na Igreja, a começar pelos presbíteros e os leigos, a fim de «fazer crescer a espiritualidade da comunhão, primeiro no seu seio e depois na própria comunidade eclesial e para além dos seus confins».

4. Espero ainda de vós o mesmo que peço a todos os membros da Igreja: sair de si mesmo para ir às periferias existenciais. «Ide pelo mundo inteiro» foi a última palavra que Jesus dirigiu aos seus e que continua hoje a dirigir a todos nós (cf. Mc 16, 15). A humanidade inteira aguarda: pessoas que perderam toda a esperança, famílias em dificuldade, crianças abandonadas, jovens a quem está vedado qualquer futuro, doentes e idosos abandonados, ricos saciados de bens mas com o vazio no coração, homens e mulheres à procura do sentido da vida, sedentos do divino...

Não vos fecheis em vós mesmos, não vos deixeis asfixiar por pequenas brigas de casa, não fiqueis prisioneiros dos vossos problemas. Estes resolver-se-ão se sairdes para ajudar os outros a resolverem os seus problemas, anunciando-lhes a Boa Nova. Encontrareis a vida dando a vida, a esperança dando esperança, o amor amando.

De vós espero gestos concretos de acolhimento dos refugiados, de solidariedade com os pobres, de criatividade na catequese, no anúncio do Evangelho, na iniciação à vida de oração. Consequentemente almejo a racionalização das estruturas, a reutilização das grandes casas em favor de obras mais cônsonas às exigências actuais da evangelização e da caridade, a adaptação das obras às novas necessidades.

5. Espero que cada forma de vida consagrada se interrogue sobre o que pedem Deus e a humanidade de hoje.

Os mosteiros e os grupos de orientação contemplativa poderiam encontrar-se entre si ou conectar-se nos mais variados modos, para trocarem entre si as experiências sobre a vida de oração, o modo como crescer na comunhão com toda a Igreja, como apoiar os cristãos perseguidos, como acolher e acompanhar as pessoas que andam à procura duma vida espiritual mais intensa ou necessitam de um apoio moral ou material.

O mesmo poderão fazer os Institutos caritativos, dedicados ao ensino, à promoção da cultura, aqueles que estão lançados no anúncio do Evangelho ou desempenham particulares serviços pastorais, os Institutos Seculares com a sua presença capilar nas estruturas sociais. A inventiva do Espírito gerou modos de vida e obras tão diferentes que não podemos facilmente catalogá-los ou inseri-los em esquemas pré-fabricados. Por isso, não consigo referir cada uma das inúmeras formas carismáticas. Mas, neste Ano, ninguém deveria subtrair-se a um sério controle sobre a sua presença na vida da Igreja e sobre o seu modo de responder às incessantes e novas solicitações que se levantam ao nosso redor, ao clamor dos pobres.

Só com esta atenção às necessidades do mundo e na docilidade aos impulsos do Espírito é que este Ano da Vida Consagrada se tornará um autêntico kairòs, um tempo de Deus rico de graças e de transformação”.
A estes cinco pontos Papa Francisco acrescentou, em um outro momento, um sexto ponto: a coragem.

2. A Vida Consagrada a Cinquenta Anos do Concílio Vaticano II: Evangelho, Profecia e Esperança

2.1. Os Religiosos na Constituição Dogmática “Lumen Gentium”sobre a Igreja (capítulo VI, 43-47)

A “Lumen Gentium” dedica o seu capítulo VI aos religiosos, situando-os como membros integrantes da Igreja povo de Deus, juntamente com os fiéis membros da hierarquia e os fiéis leigos. São apenas cinco números, mas com uma acentuação nova sobre a vida consagrada, enquanto ela é claramente situada dentro do povo de Deus, como sua parte integrante.

Como vimos, os consagrados e as consagradas são hoje na Igreja uma realidade plural, numerosa e muito significativa. São homens e mulheres que respondem com suas vidas não a um mandamento - embora estejam submissos a todos - mas aos conselhos evangélicos de castidade, pobreza e obediência “um dom divino que a Igreja recebeu do seu Senhor e por graça d’Ele sempre conserva” (n.43). E é tal seu valor que “o estado constituído pela profissão dos conselhos evangélicos, embora não pertença à estrutura hierárquica da Igreja, está contudo firmemente relacionado com sua vida e santidade” ( n.44 §4) .

Hoje, cinquenta anos após o Concílio, o aprofundamento realizado pela eclesiologia conciliar, seja como investigação teológica, seja como experiência concreta de comunhão, na expressão feliz de São João Paulo II, nos permite afirmar que na Igreja a dimensão hierárquica e a dimensão carismática são igualmente essenciais: “Muitas vezes tive a ocasião de ressaltar como na Igreja não existe contraste ou contraposição entre a dimensão institucional e a dimensão carismática, da qual os Movimentos são uma expressão significativa. Ambas são co-essenciais à constituição divina da Igreja fundada por Jesus, porque concorrem juntas para tornar presentes o mistério de Cristo e a Sua obra salvífica no mundo. Juntas, além disso, têm em vista renovar , segundo seus modos próprios , a autoconsciência da Igreja, que se pode dizer, num certo sentido, ela mesma “movimento” enquanto acontecimento, no tempo e no espaço, da missão do Filho, por obra do Pai no poder do Espírito Santo” .

Isto em nada impede que “dado que é missão da Hierarquia eclesiástica apascentar o Povo de Deus e conduzi-lo a férteis pastagens (cf Ez 34,14), cabe a ela moderar sabiamente, mediante suas leis, a prática dos conselhos evangélicos, pelos quais se fomenta singularmente a perfeição da caridade para com Deus e o próximo” (LG 45).

O Concílio vê nos religiosos e religiosas a oportunidade para a Igreja apresentar Cristo de modo cada vez mais perfeito aos homens e às mulheres: “ora contemplando no monte, ora anunciando o Reino de Deus às multidões, ora curando os enfermos e feridos e convertendo os pecadores ao bom caminho, ora abençoando as crianças e fazendo bem a todos, mas sempre obediente à vontade do Pai que O enviou” (LG 46).

Os padres conciliares reconhecem que a profissão dos conselhos evangélicos comporta a renúncia de bens que são muito apreciáveis. Esta necessária renúncia, porém, não se opõe ao verdadeiro progresso da pessoa humana; ao contrário, é de grande proveito para a purificação do coração, para a liberdade espiritual e para o fervor da caridade. A Virgem Maria e os santos fundadores são uma confirmação disso. Deste modo as mulheres e os homens consagrados estão de um maneira muito particular próximos de seus contemporâneos assegurando-lhes a ternura de Cristo (cf LG 46).

Hoje, mais do que nunca a presença da mulher consagrada e do homem consagrado na Igreja e no mundo pode ajudar a cultura atual, que convida a “não ter medo de ser feliz”, a endereçar esse desejo e essa meta para níveis mais profundos desde que, porém, o consagrado e a consagrada sejam eles mesmos pessoas humanamente felizes e realizadas, testemunhando com autenticidade que seguir Deus e viver o evangelho realizam as pessoas. Os numerosos abandonos da vida consagrada, o rosto fechado e triste de muitos deles e a falta de um espírito de família em algumas casas religiosas estão indicando que há algo para ser revisto no testemunho da vida consagrada.

2.2. O Decreto Conciliar “Perfectae Caritatis”

Neste Decreto o Concilio Vaticano II “propõe-se a tratar da vida e da disciplina dos institutos, cujos membros professam a castidade, a pobreza e a obediência, e a prover as necessidades deles, segundo as exigências dos tempos atuais (n.1) . A “Lumen Gentium”, como lembra o Decreto, já mostrou que “o procurar seguir a caridade perfeita pela prática dos conselhos evangélicos tem origem na doutrina e nos exemplos do Divino Mestre, e aparece como sinal muito claro do Reino do Céu” (idem).

Conhecemos a vida e a disciplina de mulheres e homens que, desde o início da Igreja se propuseram seguir Cristo dessa maneira e passaram a vida na solidão ou fundaram famílias religiosas que a Igreja aprovou. Hoje é muito grande o número desses grupos religiosos que tornam a Igreja preparada para toda obra boa, mas também a embelezam com sua riqueza carismática (cf idem).

Parece-me bom repropor aqui aqueles princípios gerais de uma adequada renovação da vida e da disciplina dos Institutos religiosos, das Sociedades de Vida Apostólica e dos Institutos Seculares, que o Concílio apresentou 50 anos atrás e verificar o andamento de sua realização. Eles são apresentados a partir do n.2 do Decreto. Trata-se de um contínuo retorno às fontes da vida cristã, a inspiração primitiva e original dos institutos e adaptação às novas condições dos tempos:

- Fazer do seguimento de Cristo proposto no evangelho a regra suprema.
- Conhecer e observar fielmente o espírito e as intenções específicas dos fundadores, como também as sãs tradições.
- Participar da vida da Igreja favorecendo as iniciativas e as intenções da Igreja local em matéria bíblica, litúrgica, dogmática, pastoral, ecumênica, missionária e social.
- Informar os membros sobre as condições dos homens e da época, das necessidades da Igreja para julgar e se inserir com sabedoria.
- Promover antes de tudo a renovação espiritual que deve ter sempre a primazia.
- Adaptar-se por toda a parte, mas especialmente nos territórios de missão, às condições físicas e psíquicas de hoje, dos membros, às necessidades do apostolado e às exigências da cultura, às circunstâncias sociais e econômicas.
- Cultivar o espírito de oração, indo às fontes da espiritualidade cristã.
- Em primeiro lugar ter todos os dias em mãos a Sagrada Escritura.
- Celebrar de coração e boca a sagrada liturgia, sobretudo o mistério
eucarístico.
- Alimentados pela Palavra e pela Eucaristia, amar os irmãos, respeitar e estimar os pastores com espírito filial, viver e sentir mais e mais com a Igreja, dedicando-se inteiramente à sua missão .

Há 50 anos do Concílio fará muito bem a cada um de nossos institutos ler e rever com calma (quem sabe também através do capítulo geral) estes princípios gerais que nos foram apresentados pela maior autoridade da Igreja, o Concílio presidido pelo Papa. Muito já se fez em muitas famílias religiosas, mas o programa de renovação é amplo e intenso e não o esgotamos ainda. Agora, mais do que nunca nos é necessário esse esforço já que se acentua a mudança de época e o Papa Francisco nos estimula fortemente nessa direção.

O Decreto “Perfectae Caritatis” se dirige também aos institutos totalmente voltados à contemplação. A eles dedica inteiramente os nn. 7, 9, 16 e 21). Eles “continuam a ter sempre parte eminente no Corpo Místico de Cristo” (n.7). São como ornamento da Igreja e fonte de graças celestes. São motivo de fecundidade, honram e fazem crescer o Povo de Deus. A solidão, o silêncio, a oração assídua, a penitência ardorosa levam os membros a se ocupar exclusivamente de Deus na contemplação.

O Concílio, porém, pede também para a vida contemplativa a revisão de seu modo de ser à luz dos princípios e dos critérios acima elencados, naturalmente de forma adaptada às exigências da contemplação.

Oriente e Ocidente são chamados pelos padres conciliares a conservar com fidelidade e no seu autêntico espírito a “venerável instituição da vida monacal”. Ao longo dos séculos ela adquiriu méritos tanto na Igreja como na sociedade humana. Monges e monjas são chamados a servir a Deus estando em sua presença seja dedicando-se inteiramente ao culto divino numa vida silenciosa, seja assumindo legitimamente algumas obras de apostolado e caridade cristã. A renovação das antigas tradições em vista das novas necessidades das pessoas hoje seja feita de modo que os mosteiros se tornem centros de irradiação da vida cristã (cf PC 9).

Três dimensões importantes relacionadas de modo especial à vida das monjas, hoje estão sendo reestudadas pela Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica (CIVCSVA) tendo em vista o desejo do Papa Francisco e a continuidade da renovação proposta pelo Concílio. Trata-se da clausura, da autonomia dos mosteiros e da formação.

A clausura papal se refere às monjas de vida exclusivamente contemplativa. O concílio pediu que ela seja firmemente mantida e ao mesmo tempo seja adaptada aos tempos e lugares, suprimindo os usos obsoletos. As decisões, porém, devem ser tomadas após ouvir o parecer dos vários mosteiros. A esse respeito o Papa Paulo VI aprovou no dia 12 de julho de 1969 as normas emanadas pela Sagrada Congregação para os Religiosos e para os Institutos Seculares (Normas a respeito da Clausura Papal das Monjas) (cf Instrução sobre a Vida Contemplativa e sobre a Clausura das Monjas, 1969).

Outras monjas, porém, que se dedicam por constituição a obras de apostolado não estão ligadas a clausura papal. Estas conservam sua clausura de acordo com as constituições (cf PC 16 § 2).

No caso de institutos e mosteiros decadentes eles devem se unir a outro instituto ou mosteiro com finalidade e espírito semelhantes (cf PC 21)

O Decreto “Perfectae Caritatis” incentiva ainda a formação de federações para os institutos e mosteiros independentes (cf PC 22).

2.3. A Vida Consagrada Sinal de Comunhão na Igreja e no Mundo na Exortação Apostólica Pós Sinodal “Vita Consecrata” (nn.41-58)

Há quase vinte anos a Exortação Apostólica “Vita Consecrata” nos orienta de modo consistente na renovação conciliar da vida religiosa. São numerosos os institutos que tem hoje suas constituições, suas regras, seus diretórios atualizados pelas indicações que aí estão contidas.

A Exortação Apostólica sobre a vida consagrada e sua missão na Igreja e no mundo de 25 de março de 1996 (30 anos depois da aprovação do Decreto Conciliar “Perfectae Caritatis”) é fruto de um Sínodo dos Bispos realizado depois dos sínodos dedicados aos leigos e aos presbíteros, completando assim “a exposição das peculiaridades características dos vários estados de vida, que o Senhor Jesus quis na sua Igreja” (VC 4). Foi e é grande a influência de suas orientações para a vida consagrada e, por isso, marcou e continua marcando um estágio novo de adaptação dos eremitas, dos mosteiros de vida contemplativa, das antigas ordens, das congregações, das sociedades de vida apostólica, dos institutos seculares e da “ordo virginum” ao momento atual da Igreja em diálogo com seu Senhor e com os homens e mulheres do nosso tempo.

Não temos a possibilidade de comentar aqui todo esse precioso documento eclesial, dada sua extensão (200 páginas na publicação da Libreria Editrice Vaticana, 1996) e dada também sua profundidade e amplidão de perspectivas. Nos fixamos somente nos números de 41 a 58, que é o início do segundo capítulo, porque nos parece encontrar aqui o coração dos valores permanentes da vida consagrada como sinal de comunhão na Igreja.

O que nos sensibiliza particularmente é a perspectiva de que o fundamento do mistério de comunhão da Igreja e, por isso, o fundamento da vida dos filhos e filhas da Igreja que são os consagrados e as consagradas, é o “ser imagem e semelhança da Santíssima Trindade”.

Ainda não tomamos consciência suficiente de que a Santíssima Trindade, além de adorada com todas as nossas forças, além de professada com a profunda retidão da linguagem da Igreja ao longo da história, deverá deixar de ser para os discípulos de Jesus um teorema indecifrável. Este teorema pode ser sintetizado na pergunta: como combinar unidade e diversidade em Deus e, por consequência, em sua imagem humana de homens e mulheres, para ser vivida no dia a dia da Igreja-comunhão inserida num mundo globalizado? Por isso, preferimos desenvolver algumas perspectivas sempre mais amadas na antropologia cristã e na eclesiologia atual que nos indicam um caminho universal para tornar vida em nossa vida a comunhão do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Nos dedicaremos a isso um pouco mais a frente.

“Vita Consecrata” nos faz entender a “sequela Christi” própria dos consagrados, através dos votos de pobreza, castidade e obediência, à luz do mistério trinitário. Na Exortação, a vida consagrada é vista como imagem da Santíssima Trindade (cf n. 41). A comunidade dos “doze” ao redor de Jesus, a comunidade nascida ao redor dos apóstolos e de Maria (cf At 2,42-47; 4, 32-35) é o modelo em que a Igreja se inspirou porque ela é essencialmente mistério de comunhão “um povo reunido na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo”

Ὰ medida que a vida consagrada hoje toma consciência da antropologia e eclesiologia trinitárias e experimenta sem reticências a espiritualidade de comunhão, dentro do carisma próprio de cada Instituto e entre eles, e bem inserida na Igreja-comunhão, ela continuará a oferecer uma luz necessária para o seguimento de Jesus. “Ά vida consagrada pertence seguramente o mérito de ter contribuído eficazmente para manter viva na Igreja a exigência da fraternidade como confissão da Trindade. Com a incessante promoção do amor fraterno, mesmo sob a forma de vida comum, a vida consagrada revelou que a participação na comunhão trinitária pode mudar as relações humanas, criando um novo tipo de solidariedade” (VC § 2).

Com os novos aprofundamentos teológicos feitos como reflexo da experiência de comunhão na Igreja hoje, podemos avançar muito na compreensão e no testemunho de uma vida fraterna concebida como reflexo da Santíssima Trindade. Justamente por esta origem trinitária da Igreja “a vida fraterna, concebida como vida partilhada no amor, é sinal eloquente da comunhão eclesial” (n. 42). É um amor incondicional baseado no mandamento novo do Senhor (cf Jo 13,34), chamado a se converter em amor recíproco, lei imprescindível da comunidade cristã e particularmente dos consagrados.

É sob esta luz que poderemos rever algumas experiências típicas da vida consagrada como é o caso dos binômios autoridade-obediência, homem-mulher consagrados, jovem-pessoa idosa, ou ainda discípulo-missionário.

Autoridade e obediência no seio da Igreja mistério de comunhão e, por conseguinte, no seio das comunidades de consagrados e de consagradas, não podem converter-se em autoritarismo ou escravidão. Terão que converter-se necessariamente em uma experiência madura e livre de fraternidade. De fato, não se pode indicar a vontade de Deus ou obedecer a esta mediante um superior, se a autoridade e os que obedecem não procuram juntos seguir Jesus.

Sem abdicar de sua tarefa de primeiro responsável na comunidade, a autoridade serve justamente para consolidar a comunhão fraterna e não para frustrar a obediência professada (cf VC n.43) . Mas isso só é possível quando “quem manda” e “quem obedece” se reconhecem e se tratam como irmãos. Uma das razões mais incisivas disso está no fato de que só é possível encontrar a vontade de Deus se os dois membros da comunidade (isto é, os dois discípulos do Senhor) se reconhecem e se experimentam irmãos.

A vida da Santíssima Trindade feita amor fraterno na comunidade, desperta outra dimensão concreta do amor, muito necessária hoje: o cuidado das pessoas idosas e dos enfermos: “Elas tem certamente muito que dar em sabedoria e experiência à comunidade, se esta souber estar ao seu lado com atenção e capacidade de escuta” (VC 44).

Como já lembramos antes, a Exortação Apostólica pede aos consagrados que vivam à imagem da comunidade apostólica o “sentire cum Ecclesia”, o construir a fraternidade da Igreja em todo o mundo, como também em cada Igreja Particular. Como consequência, a experiência chamada a crescer constantemente é a experiência do diálogo animado pela caridade. Isto vale especialmente para o testemunho da fraternidade em um mundo dividido e injusto. Por isso, chegou o tempo de uma comunhão sincera entre os diferentes institutos e sociedades de vida apostólica, como já se ve em muitos lugares. Os organismos de coordenação precisam ser apoiados assim como a comunhão e a colaboração com os leigos (cf VC 45-56).

A dignidade e o papel da mulher em geral e da mulher consagrada em particular foram bem acentuadas na “Vida Consagrada” (cf nn. 57 e 58). A Exortação prevê novas perspectivas de presença e de ação, além da urgência de criar “espaços de participação nos vários setores e a todos os níveis, mesmo nos processos de elaboração de decisões, sobretudo naquilo que lhes diz respeito” (VC 58).

3. Vinho Novo em Odres Novos: Três Odres Novos a Serem Cuidados Hoje na Vida Consagrada
3.1.- Vida Fraterna em Comunidade;
3.2.- Formação Contínua e Inicial;
3.3.- Experiência do Poder e o Uso do Dinheiro e das Propriedades.

De acordo com o Papa Francisco, no final do ano de 2014, realizamos a Assembleia Plenária do nosso Dicastério em Roma, olhando para a vida consagrada a partir do Evangelho de Marcos: “Vinho Novo em Odres Novos” (Mc 2,22). Isto é, o vinho novo que é Jesus, que é o Evangelho, nos dias de hoje, também para a vida consagrada, deve ser experimentado em estruturas culturais e estruturas institucionais novas, diferentes das do passado. Surge, então a pergunta: Quais são as estruturas e instituições que não servem mais, e quais os processos que precisamos desenvolver para permitir o nascimento de novas estruturas e instituições?

Durante todo o ano da vida consagrada que acabamos de viver, já começamos a nos mover nessa direção, fortemente orientados pelas palavras e gestos iluminadores do Papa Francisco. E’ sua a afirmação que “depois do Concílio Vaticano II o vento do Espírito continuou a soprar com força, por um lado levando os Institutos a atuar a renovação espiritual, carismática e institucional que o próprio Concílio pediu; por outro lado suscitando no coração de homens e mulheres modalidades novas de resposta ao convite de Jesus para deixar tudo e dedicar a própria vida ao seguimento Dele e ao anúncio do Evangelho”.

O Papa Francisco, porém, chamou também nossa atenção para certas áreas de fragilidade que também na CIVCSVA nós reconhecemos: “a fragilidade de certos itinerários de formação; a preocupação desmedida com as responsabilidades institucionais e ministeriais em detrimento da vida espiritual; a difícil integração das diversidades culturais e generacionais; um equilíbrio problemático quanto ao exercício da autoridade e quanto ao uso dos bens”. Para responder ao convite do Papa Francisco a “não ter medo de deixar os odres velhos” para assumir os novos, a CIVCSVA propõe para a vida consagrada o cuidado em particular com tres âmbitos, ou, com a linguagem do Evangelho, três odres: a via fraterna em comunidade; a formação contínua e inicial; a experiência do poder e o uso do dinheiro e das propriedades.

3.1. Vida Fraterna em Comunidade

O primeiro odre da vida consagrada que precisa hoje se renovar, depois da chamada amorosa da parte de Jesus de cada um de nós, é o da vida fraterna em comunidade. No novo momento que vivemos, somos chamados a contribuir com o cuidado e a regulamentação das diversas formas de estruturas de comunhão e de comunidades na vida consagrada. Cada pessoa consagrada e cada comunidade de consagrados são hoje chamados a fundamentar sua vida no mistério e na missão de Deus-Trindade, isto é, no Amor.

Os consagrados e as consagradas, sendo concretamente esta realidade trinitária, são chamados a dispor-se à saída missionária, de acordo com o próprio carisma, para ir em direção a cenários e desafios novos, especialmente em direção àquelas periferias que mais tem necessidade da luz do Evangelho. Isto comporta a previsão de estruturas comunitárias que sejam mais missionárias e atividades mais dinâmicas e abertas para esta saída.

A crescente comunhão deve levar à crescente consciência da “intimidade itinerante” do consagrado e da consagrada com Jesus (EG 23). Ele e ela não podem esquecer de viver em estado permanente como discípulos de Jesus durante toda a vida. E’ daqui que provém a razão da “formação contínua”. Por isso tal caminho será realizado cultivando a escuta da Palavra do Senhor através da “lectio divina”, deixando-se formar pela liturgia e pelo ano litúrgico e pela oração pessoal. E ainda: será necessário criar as condições para um correto discernimento comunitário da vontade de Deus, habituando-se com a circularidade das relações. “A história nos ensina, diz o Papa Francisco, que as boas estruturas servem quando existe uma vida que as anima, que as sustenta e que as avalia” (EG 26).

Além disso, caminhamos sempre mais em direção a comunidades multiculturais e interculturais. A presença de várias culturas nas comunidades é um dom de Deus para a vida consagrada e para a Igreja, mas nem sempre produziu comunhão intercultural, tanto na formação como na missão. Para que isso aconteça, cada um precisa ser sujeito livre e responsável pelo próprio dom e, ao mesmo tempo, aberto ao dom do outro. O que está à frente da comunidade precisa saber motivar e provocar a convergência das diversidades em direção à sinodalidade, à sinergia, à corresponsabilidade. O olhar contemplativo recíproco, o desejo de construir juntos a Igreja e a hospitalidade solidária devem se tornar fermento de diálogo e de confiança em um mundo onde falta acolhida e reciprocidade fraternas.

3.2. Formação Contínua e Inicial

O Papa Francisco afirmou: “ “Vinho novo” são os jovens que pedem para entrar na vida consagrada. “Odres novos” são as estruturas de acolhida e de formação, inicial e permanente, afim de que aquele vinho se torne “vinho generoso capaz de revigorar a vida da Igreja e alegrar o coração de muitos irmãos e irmãs”.

A formação é a ação do Pai que, a partir da nossa conversão, forma em nós o coração do Filho, pela potência do Espírito Santo. Por isso se faz necessário que a formação seja integral (humana, intelectual, teológica e espiritual), que tenda a formar uma pessoa consistente em seu querer (íntegra e “docibilis”, isto é, que permite ser trabalhada), através de um modelo de integração, afim de que o consagrado e a consagrada tenham “os mesmos sentimentos de Cristo” (Flp 2,5; VC 70ss).
De modo particular a formação precisa ser nutrida por um sábio discernimento vocacional e mostrar-se atenta à área afetiva e sexual, com um método formativo bem integrado com as dimensões espiritual e psicopedagógica. Os recentes escândalos nessa área expõem falhas objetivas no caminho percorrido.

A “docibilitas”, ou o “deixar-se trabalhar por Deus” deve se tornar aquisição também dos formadores e das formadoras por toda a vida. Por isso nós pedimos que seja prevista na “Ratio Institutionis”, isto é, no “programa formativo” a obrigação de preparação dos formadores através de percursos de formação que proporcionem uma preparação integral daquele ou daquela que acompanha a formação. Isto deverá ser feito por uma formação não somente técnica, através das ciências humanas, de acordo com uma antropologia cristã, mas também não somente espiritual.

Naturalmente o formador precisa ser uma pessoa suficientemente madura, capaz de integrar em si as duas dimensões e colocar-se em posição de escuta em seu confronto constante com a cultura dos jovens.

Papel específico da formação inicial é a “docibilitas”, isto é, o comportamento da “pessoa que aprendeu a aprender da vida por toda a vida”. “Docibilis” é o “vir ob-audiens”, isto é, o que procura Deus em todas as coisas e se dispõe a deixar-se formar por sua mão, na missão e na oração, inserido no contexto da Igreja Particular, na fraternidade-solidariedade e na “periferia”, nas coisas previstas e nos imprevistos da vida, nos sucessos e nos insucessos, em todas as estações da vida. Neste sentido não pode ser apenas o noviciado a formar o consagrado. E’ a própria vida, em cada um de seus momentos e circunstâncias a que se torna mediação misteriosa da mão do Pai, do nosso único Pai formador.

Nosso desejo é que cada Instituto assuma com seriedade e coerência a formação contínua. Precisamos promover uma cultura da formação contínua nas suas duas dimensões essenciais: a ordinária, que acontece dia após dia, em cada instante, cujo responsável é a pessoa síngula no contexto de sua comunidade; a dimensão extraordinária, que acontece através de cursos de aggiornamento, ou em momentos de dificuldades particulares do consagrado (a), sob a responsabilidade de próprio Instituto.

Para tal fim pedimos que se considere a possibilidade de dar vida a uma estrutura, isto é, a uma comunidade de consagrados e consagradas que assuma em conjunto o que se refere à formação contínua, para ajudar o caminho das situações ordinárias e extraordinárias da vida como são as crises, as passagens de idade, os novos encargos e outras muitas dificuldades.

À luz destas exigências da formação contínua e inicial, se faz necessária uma atualização do documento “Potissimum Institutioni”, Instrução da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica de 2 de fevereiro de 1990 sobre as orientações para a formação na vida religiosa.

3.3. Experiência do Poder e o Uso do Dinheiro e das Propriedades

Trata-se do ensinamento do Evangelho a respeito do governo e da economia.
Em 2008 a CIVCSVA publicou uma Instrução muito oportuna, nesse sentido, a respeito da autoridade e da obediência: O Serviço da Autoridade e a Obediência, Faciem tuam, Domine, requiram.

A pedido do Papa Francisco a CIVCSVA realizou em março de 2014, um Simpósio Internacional em Roma com o título A Gestão dos Bens Eclesiásticos dos Institutos de Vida Consagrada e das Sociedades de vida Apostólica a Serviço do “Humanum” e da Missão na Igreja. Um novo Simpósio sobre o assunto está sendo preparado em Roma para concluir este trabalho, com a participação de todos os interessados.

A respeito de governo e economia é necessário abrir espaços de participação. A Exortação Apostólica “Vita consecrata” afirmou que é “urgente dar alguns passos concretos, a partir da abertura para as mulheres de espaços de participação em vários setores e em todos os níveis, também nos processos de elaboração das decisões, sobretudo naquilo que se refere a elas (VC 58). Respondendo a essa orientação nosso Dicastério assumiu mais mulheres e está revendo os valores dos salários que normalmente é mais baixo que o dos homens.

Um exame de consciência sincero em nossos Institutos, a respeito da economia, do uso dos bens e das propriedades, poderá nos ajudar a discernir se de fato estamos servindo a Deus ou ao dinheiro. Uma mentalidade capitalista pode muito bem ter entrado em muitas de nossas comunidades a ponto de acharmos que sem o dinheiro ou os bens não podemos evangelizar. Nesse caso será necessário rever as instruções que Jesus mesmo dá aos seus discípulos para que possam partir para a missão.

Com relação a autoridade e a obediência há muito que modificar em nossa experiência de vida consagrada a partir do Evangelho levado a sério. O batismo nos deu a todos os cristãos uma só dignidade, a de filhos de Deus. Para nenhum discípulo de Cristo (cardeal, bispo, padre, diácono, consagrado, casado, diretor, professor, reitor, profissional, ...), há uma outra dignidade. Somos todos irmãos e irmãs, filhos do mesmo Pai. Por isso quem tem uma autoridade na Igreja não é maior do que os outros, não possui uma dignidade maior do que os outros. E a consequência dessa verdade é que para usar de autoridade e para obedecer, antes é necessário ser irmão, irmã de verdade. Da mesma forma o carisma de um fundador não está apenas num superior ou no seu conselho, mas está em todos os membros daquele Instituto. O autoritarismo esmaga as pessoas e a obediência sem o esforço de comunicar a luz de Deus, que está também em quem obedece, imbeciliza as pessoas. Sou chamado a obedecer sim, como último gesto que manifesta minha fé, mas não estou dispensado de dar a quem tem a autoridade a luz de Deus que está em mim. Muitas vezes parece mais fácil nos omitir para não criar complicações ou para evitar perigos. Mas isso não corresponde a uma experiência de um discípulo do Senhor.

Com referência aos Institutos masculinos mistos (compostos de membros irmãos consagrados e de sacerdotes) é preciso lembrar as palavras do Papa Francisco: “o sacerdócio... pode se tornar motivo de particular conflito se se identifica demais a potestade sacramental com o poder” (EG 104). Por isso a CIVCSVA levará adiante o trabalho para o reconhecimento da natureza específica dos Institutos “mistos” e do exercício da autoridade na sua estrutura jurídica.

Ainda com relação ao poder, ou à autoridade, a pedido do Papa Francisco, estamos preparando um texto com a finalidade de reescrever o documento “Mutuae Relationes”, que se refere às relações entre bispos e Institutos de vida consagrada. No centro do novo documento, cujo primeiro esquema foi preparado pela CIVCSVA, juntamente com a USG (União dos Superiores Gerais) e a UISG (União Internacional das Superioras Gerais), estão, a pedido do Papa Francisco, a Espiritualidade de Comunhão e os dois princípios co-essenciais da Igreja, hierarquia e carismas. Com esta nova luz o documento alarga as relações em todas as direções.

Com relação ao patrimônio e a administração dos bens será necessário impostá-los de tal modo que nossa pobreza testemunhe uma “Igreja pobre para os pobres”. Para isto é necessário partir do conhecimento do contexto econômico em que vivemos. É necessário organizar a economia com profissionalismo e transparência. É necessário afirmar a igualdade e participação de todos os membros. É necessário definir as estruturas de corresponsabilidade na comunhão. É necessário garantir a formação dos ecônomos e das ecônomas. É necessário alargar as áreas de condivisão das comunidades até se alcançar o horizonte global.

4. O Mistério da Santíssima Trindade como Fundamento da Antropologia Cristã

Aprofundaremos este ponto particularmente importante para a vida consagrada hoje, em tres momentos:

4.1. Vida Consagrada na Medida de Deus e na Medida do Homem e da Mulher de Hoje
4.2. Deus é Amor (1 Jo 4,8.16). O Homem e a Mulher também São Amor (Gen 1,27)
4.3. Tornar-se Pequeno, como Deus, para ser Amor, como Deus (Flp 2,5-11)

4.1. Vida Consagrada na Medida de Deus e na Medida do Homem e da Mulher de Hoje

Os consagrados e as consagradas de vida contemplativa e também os de vida ativa não existem para ocupar-se em primeiro lugar com as obras e as estruturas surgidas em sua história desde o passado. Muitas vezes estas obras e estruturas hoje se tornaram pesadas e sempre mais difíceis de serem administradas em uma situação de sempre menos pessoal disponível e de exigências sociais e públicas cada vez mais abrangentes. Esta parece ser a realidade de uma boa parte das ordens e congregações religiosas sobretudo na Europa, nos Estados Unidos, no Canadá e na Austrália. O mesmo fenômeno, porém, começa a se acentuar também nos outros continentes.

Como nos pediu o Concílio, é necessário voltar ao sentido verdadeiro da vida consagrada, isto é, seguir Deus, descobrir, como experiência, o seu amor, pois Ele nos chamou através do nosso fundador, da nossa fundadora. De fato o que caracteriza os fundadores é terem eles seguido a iluminação que Deus lhes deu. Foi por isso que eles se realizaram, foram felizes, e construíram monumentos de beleza e de santidade na Igreja.

De outro lado estamos tomando consciência de que o homem e a mulher de hoje chegaram a uma nova maturidade. São ciosos de valores como os da liberdade, da igual dignidade, da justiça, da diversidade, da paz, ... A globalização, facilitada pelo aperfeiçoamento da tecnologia, invadiu todos os recantos da terra. Ao mesmo tempo, porém, somos herdeiros de fenômenos que se arraigaram em nós como o individualismo, a perda dos valores tradicionais e universais, o laicismo que, à fúria de combater a religião, se torna ele mesmo uma religião, o eterno sonho do homem sem Deus, que se basta a si mesmo. No coração desse homem e dessa mulher de hoje continua viva a ânsia de felicidade, a busca da realização pessoal e coletiva, mesmo que seja conseguida somente em alguns momentos fugazes.

E nós cristãos nos apercebemos que a grande herança de luz dos milênios passados da história da fé, embora sentida como uma grande riqueza, já não é mais suficiente hoje nos mesmos moldes que recebemos do passado. A época mudou, as exigências humanas mudaram, as possibilidades de vida mudaram e ficamos meio perdidos no fenômeno cultural que hoje se processa. Voltam as tendências do tradicionalismo e do “futurismo” na Igreja, como formas de encontrar segurança na experiência de fé. O envelhecimento de muitas congregações, a ausência de vocações, o numeroso abandono da vida consagrada por homens e mulheres consagrados em todas as idades da vida, o desacerto entre os consagrados mais idosos e os mais jovens, o aparecimento de fundadores infiéis ao próprio carisma como consequência de sua infidelidade ao evangelho, tudo isso, nos questiona. Qual será, pois, a vida consagrada autêntica na medida de Deus e na medida do homem e da mulher hoje?

4.2. Deus é Amor (1 Jo 4,8.16). O Homem e a Mulher Também São Amor (Gen 1,27)

No início de nosso caminho vocacional de consagrados e de consagradas nos marcou, sem dúvida, uma experiência profunda de Deus que nos atraiu com seu amor suavemente, ou mesmo fortemente. O que a maioria de nós não duvida é que se tratou de uma experiência verdadeira e envolvente. Enamorados seguimos esse chamado, no começo a partir de sinais por vezes simples, sem perceber quem sabe a dimensão exigente que se mostraria depois, mas seguimos o Senhor sem medos e por caminhos pouco conhecidos. Esse é o momento mais significativo do que determinou nossa vida. A ele é necessário voltar com decisão para não perder a estrada e manter acesa a chama da busca de felicidade que queima dentro de nós.

O apóstolo e evangelista João nos assegura que Deus é amor (1 Jo 4, 8. 16). Não se trata de um sentimento em Deus, ou de uma sua virtude, mas daquilo que define o que Deus é: Ele é amor. Este é o seu ser, esta é sua essência, se assim quisermos dizer. Experimentar o chamado de Deus no início de um chamado para a vida consagrada significa experimentar a presença do amor, experimentar a força de atração do amor, sentir a vontade de ser amor. Com toda a certeza, nesse momento, Deus não envolveu apenas a nossa inteligência para a adesão a uma verdade de fé, ou a nossa vontade para a adesão à moral cristã que gera comportamentos novos. Foi, sem dúvida, uma experiência mais abrangente, que envolveu todo o nosso ser, inclusive os afetos e nossa sexualidade.

Somente experimentando o amor podemos compreender que Deus tenha tomado a inciativa de tornar-se carne, tornar-se humano, na pessoa do Filho, em Jesus de Nazaré, o filho da Virgem Maria. E’ o Amor Aquele que vem em busca de sua criatura afastada pelo pecado, para retomar para si o que é seu. O mistério da encarnação do Filho tem as características do amor. É’ manifestação do amor.

Com a vinda do Filho entendemos que o amor não é solidão e sim comunhão. Jesus, o Filho de Deus encarnado, nos revela, por isso, que Ele não vive sozinho. Ele tem um Pai que é Deus como Ele. Ele nos revela e nos comunica também o Espírito Santo que é Deus como Ele e o Pai. Por isso Três que são o amor não formam três solidões. Ao contrário, os Três diferentes e bem individuados, cada um como pessoa, difere do outro, e, ao mesmo tempo, forma com o outro uma única unidade em perfeito equilíbrio. De fato, em Deus-Amor, unidade e diversidade não se opõem, mas são duas faces da mesma realidade. Essa aproximação do mistério central de Deus poderá hoje ajudar a ontologia (filosofia) e a antropologia cristãs a dar novos passos para ajudar a cultura atual a compor, de modo positivo, as dimensões da unidade e diversidade na experiência humana e na compreensão e experimentação da natureza e do cosmos .

Por que buscamos no mistério da Santíssima Trindade a realidade mais profunda para abrir o caminho de uma experiência antropológica para o nosso tempo?

Porque os tempos são novos, exigentes, complexos, marcados pelo progresso tecnológico que permite novas experiências humanas não possíveis antes e modificam muitos dos parâmetros e critérios de vida que até agora usamos. A própria fé assumiu formas da cultura de outros tempos que hoje não sentimos mais. Cresceu a consciência da importância dos valores humanos que devem ser alcançados e não podem eles estar em contraposição com os valores que a fé propõe. Prefere-se alcançar uma felicidade humana possível que buscar uma felicidade futura incerta e difícil, e isso não depende do grau de dificuldade para alcançá-la. Para nós homens e mulheres de fé, cristãos que querem arriscar tudo pela pessoa de Jesus Cristo, aqui está o novo desafio. Por que a nossa experiência de fé parece não nos oferecer uma felicidade maior do que a daqueles que não seguem Jesus?

Recorremos ainda à Palavra de Deus para fazer a passagem necessária da realidade de Deus para a nossa realidade humana e cósmica. Voltemos à narrativa da criação assim como nos é descrita no livro do Gênesis 1, 27-28: O Homem e a Mulher são: criatura, filho e filha, e imagem de Deus.

Criatura “Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus o criou.
Homem e mulher ele os criou.
E Deus os abençoou e lhes disse: “Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a! Dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que se movem pelo chão”” (Gn 1,27-28)

Deus criou o ser humano: A Bíblia transmite a certeza de que Deus existe e de que o ser humano não é deus, mas é criado por Deus e, por isso, é sua criatura.

O ser humano é imagem de Deus: há uma mesma identidade entre Deus, o homem e a mulher. Hoje, depois da vinda de Jesus Cristo, nós compreendemos que o ser humano é imagem do Pai e do Filho e do Espírito Santo, isto é, da Santíssima Trindade. Foi o Filho de Deus quem nos revelou e nos comunicou este grande mistério. Como Deus é amor, o ser humano também é amor.

O ser humano é homem e mulher: estas são as duas faces da humanidade, o masculino e o feminino. Eles são colocados em pé de igualdade, um com o outro, e chamados a formar uma unidade de vida. Diversos, como as pessoas da Trindade, mas chamados à comunhão de vida, como a Trindade Santa é um só Deus.

Na criação Deus abençoou o homem e a mulher: eles são criaturas abençoadas e, por isso, agradáveis a Deus. Na origem o homem e a mulher são bons e foram agraciados por Deus porque nasceram de suas mãos. O homem e a mulher foram queridos por Deus desde sua origem e a história da salvação, narrada pela Bíblia, mostra que Deus não pode viver sem procurar e amar o homem e a mulher. Por isso, Ele os fez fecundos. A existência de outros seres humanos, que nascem do primeiro homem e da primeira mulher, não modifica as características da origem, enquanto todos os homens que são chamados ao banquete da vida, pela fecundidade dos primeiros pais, são criaturas de Deus, são homens e mulheres, e são imagem de Deus, por Ele abençoados. Também eles, que são frutos dessa fecundidade, são chamados a presidir a natureza, aperfeiçoando-a com sua inteligência e conservando-a para todos.

Filho e Filha “Com efeito, vós todos sois filhos de Deus pela fé no Cristo Jesus. Vós todos que fostes batizados em Cristo vos revestistes de Cristo. Não há mais judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher, pois todos vós sois um só, em Cristo Jesus” (Gl 3,26-28).

“Quando se completou o tempo previsto, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sujeito à Lei, para resgatar os que eram sujeitos à Lei, e todos recebemos a dignidade de filhos. E a prova de que sois filhos é que Deus enviou aos nossos corações o Espírito que clama: “Abá, Pai!” Portanto, já não és mais escravo, mas filho; e, se és filho, és também herdeiro; tudo isso, por graça de Deus” (Gl 4,4-7).

A graça da filiação divina é a que dá ao homem e à mulher sua maior e única dignidade humana. Nenhum ministério, nenhum carisma, nenhum estado de vida, constitui uma nova dignidade, de tal modo que estes são apenas serviços a serem oferecidos aos membros do povo de Deus, todos eles revestidos da mesma dignidade de filhos de Deus. Hoje é preciso arregaçar as mangas para modificar nossas velhas e falidas atitudes pessoais herdadas de uma cultura contrária ao evangelho. Nós bispos, como também todos os consagrados e consagradas, somos chamados a essa necessária mudança interior.

Chegamos a esse conhecimento acima, sem contrariar a luz que nos chega da razão, a respeito do homem e da mulher, enquanto somos iluminados pela fé. De fato, foi o Filho, Jesus Cristo, quem nos revelou e comunicou que Deus é Pai e Filho e Espírito Santo, um único Deus em três pessoas distintas.

Para aprofundar esse mistério (realidade maravilhosa) do homem e da mulher criados à imagem de Deus, precisamos nos aproximar reverentes da própria identidade de Deus. Dificilmente o homem e a mulher teriam chegado ao conhecimento de Deus em três pessoas, sem que, do alto, o próprio Filho o tivesse revelado. Hoje, ajudados pela “sequela Christi” e pela reflexão teológica aprofundada a partir dos documentos atualíssimos do Concílio Vaticano II, chegamos a compreender que a vida consagrada precisará continuar a dar novos passos na direção da espiritualidade de comunhão, cujos passos terão necessariamente que partir do mistério que é fonte segura do caminho: a Santíssima Trindade. Um esboço do caminho que deverá ser percorrido como experiência eclesial pelos consagrados e consagradas, mas também por todos os discípulos de Jesus hoje, tendo em conta os tempos profundamente mudados é o que segue abaixo:

Deus é Uno e Trino porque Deus é amor (1 Jo 4,7-21). A encarnação do Filho de Deus, Jesus Cristo, permitiu ao homem e à mulher conhecer e experimentar o amor. A Carta de Paulo aos Filipenses (2,5-11) explica o amor de Deus como kénosis (esvaziamento). O mistério da encarnação, a vida de Jesus de Nazaré e o mistério pascal confirmam o caminho da revelação e da comunicação do amor por parte de Deus como kénosis (esvaziamento). Somente esta poderá ser a estrada do amor entre os homens e as mulheres. Por isso é necessário começar a leitura do texto aos filipenses a partir do versículo cinco.

Desse modo o nosso desafio para experimentar Deus-Amor, para experimentar seu amor, passa pela reconstrução da relação com a pessoa que está diante de nós. Sem isso, segundo Jesus, não há experiência de Deus. Deus é um só em três divinas pessoas porque suas relações são amor: o Pai só é pai porque tem um Filho; assim é também o Filho. O Espírito Santo é o amor que une o Pai e o Filho. Entre nós é a experiência de relação de amor com o outro a que permite experimentar Deus. Por isso hoje não será fugindo do outro para se proteger que nós encontraremos e experimentaremos Deus, mas aproximando-nos do outro, homem ou mulher, com simplicidade de coração, dispostos a amá-lo, que nós penetraremos o mistério de Deus. Esta é uma mudança necessária na prática da espiritualidade hoje.

Em Deus unidade e diversidade coincidem de modo perfeito. O homem e a mulher, criados à imagem de Deus Uno e Trino são um ser em relação de amor entre si e com todos os demais homens e mulheres. Consequência disso, é que o homem e a mulher só podem construir de um modo correto sua identidade, em relação de amor com os demais homens e mulheres. A kenosis (o esvaziamento de si por amor ao outro) é a única maneira possível para se experimentar a unidade entre as pessoas, sem destruir a diversidade. O amor humano que se torna divino é capaz de amar a todos, amar por primeiro, amar sempre, como ama Deus. O amor que se torna recíproco ao menos entre duas ou três pessoas, gera a presença de Jesus entre elas (cf Mt 18,20). As pessoas que realizam a experiência do amor trinitário em seus relacionamentos provam e testemunham a felicidade verdadeira. Esta felicidade não se dá sem as condições colocadas por Jesus: renunciar a si mesmo e tomar a própria cruz. A compreensão nova, que ilumina este caminho é que a renúncia a si mesmo e o tomar a própria cruz, são motivados pelo amor, como o de Jesus.

4.3.Tornar-se Pequeno, como Deus, para Ser Amor, como Deus (Flp 2,5-11)

Para compreender o Amor e para experimentar seus efeitos no homem e na mulher, a ponto de fazê-los experimentar a felicidade, não é suficiente elaborar um correto sistema de ideias, por mais bem construído que seja. O Amor é, antes de mais nada, o resultado de uma experiência repetida pacientemente com relação a Deus e em relação contínua com o homem e a mulher. E’ preciso, porém, partir do supremo mistério da Santíssima Trindade.

O Filho de Deus foi enviado pelo Pai para garantir ao homem e à mulher que Deus é amor e, por isso, nunca deixou de amar sua criatura, mas a destinou a se tornar seu filho e sua filha.

Ele, o Filho de Deus, feito homem, foi quem nos revelou e comunicou que Deus é Pai, Filho e Espírito Santo. Não são três deuses, mas um só Deus. Ele é o ser, o fundamento de todo o ser. Somente Nele todas as coisas existem. Somente Nele o homem e a mulher existem.

Deus, porém, é também não-ser, porque o Pai não é o Filho. O Filho não é o Pai. O Espírito Santo não é nem o Pai e nem o Filho. Em Deus a diversidade é una, sem deixar de ser diversidade ao mesmo tempo. Em Deus o ser e o não-ser coexistem em perfeita identidade e diversidade. O homem e a mulher, imagem e semelhança desta única fonte verdadeira, são chamados a exprimir, em sua realidade humana de “filhos no Filho”, o mistério escondido em Deus (cf CIC 254).

Para intuir e viver algo desta infinita realidade nós precisamos aprofundar o que é o Amor. A melhor maneira para fazer isso é observar o modo de agir de Deus Pai quando envia seu Filho na encarnação do Verbo, no seio da Virgem Maria.

O apóstolo Paulo nos vem em ajuda na Carta aos Filipenses (2, 5-11).
Este hino cristológico nos fala de um “esvaziamento” do Filho para poder encontrar a pequenês do homem e da mulher. Somente o Amor é capaz de um movimento inusitado e, aparentemente, contraditório. Em teologia chamamos este modo de agir de Deus “kenosis” (esvaziamento), presente no mistério da encarnação, na vida escondida de Nazaré e de modo quase incompreensível no mistério da cruz (paixão e morte do Senhor). Nesse percurso é o amor de Deus que se manifesta diante do homem e da mulher do modo mais completo e radical, chegando ao ponto do “abandono” e da morte de Jesus na cruz. O homem Jesus de Nazaré, Filho de Deus, morre sozinho, sem receber a resposta do Pai ao seu grito de extrema dor. Morreu sem ouvir a resposta do Pai, sem resposta, ... Ficou do nosso lado, mesmo no momento mais duro em que toda sua vida e sua obra poderiam parecer um grande absurdo e ilusão. O Pai, de quem o Filho veio, com quem o Filho habita e que amou e ama o Filho desde toda a eternidade, deixou o Filho “sozinho”, sem intervir, em sua condição de fidelidade ao homem e à mulher. Por isso, o Filho deixa-nos a herança bendita de uma fidelidade a toda a prova, continuando, como única coisa que lhe resta, a acreditar no amor do Pai. Por isso, seu último gesto é entregar nas mãos do Pai seu espírito .

Ά luz deste mistério insondável de dor e de amor do mistério pascal, a espiritualidade da unidade, ou a espiritualidade de comunhão, nos ajudam hoje a tirar uma conclusão que pode ter efeitos de grande profundidade em nossa vida de discípulos: se o grito de abandono de Jesus na cruz é o momento de sua maior dor, é também o momento de seu maior amor. O grito de abandono de Jesus pouco antes de morrer na cruz torna-se, para nós discípulos, o modelo do mais perfeito amor. Este é, de verdade, o ato de obediência perfeito.

Um Amor assim, vivido pelo homem e pela mulher diante de Deus, como resposta incondicional de amor, e, ao mesmo tempo, vivido com a mesma intensidade e qualidade diante de cada pessoa humana, é capaz de fazer brotar a vida e a felicidade lá onde ela talvez esteja se apagando e terminando. Penso sinceramente que nós temos aqui uma realidade espiritual e humana capaz de fazer renascer e se desenvolver a vida consagrada no meio de suas crises atuais .

Um discípulo de Jesus, que ama outra pessoa na medida do Amor que é Deus, com um Amor divino e humano ao mesmo tempo, cria as melhores condições para que o outro, amado, experimente alegria e felicidade verdadeiras e queira também ele fazer o mesmo caminho com o discípulo de Jesus que o amou. Quando acontece isso entre duas ou mais pessoas, realiza-se a promessa de Jesus feita em Mt 18,20. Entre eles, então, tem início uma comunidade verdadeira, onde se percebe a presença de Jesus. Esta presença, atraente por si mesma, se torna evangelizadora, e de tal modo que a comunhão se converte na condição verdadeira e imprescindível da própria evangelização (missão), com resultados que se tornam visíveis e surpreendentes .

Assim, o Amor, que é reciprocidade entre as Pessoas da Santíssima Trindade, se faz reciprocidade entre os discípulos, e gera a presença do Senhor entre eles. Desta forma compreendemos como a missão nasce da comunhão e nela se alimenta. Podemos mesmo afirmar com convicção que o Verbo se fez carne para que a carne se fizesse comunhão, alimentada pela Palavra e pela Eucaristia. Reunimos assim, como experiência realizada hoje na comunidade, as características da primeira comunidade de Jerusalém: eram unidos na doutrina dos Apóstolos (o mesmo que “Palavra de Deus”), koinonia (comunhão fraterna) e “fração do pão” (Eucaristia) (cf Atos 2,42).

O Catecismo da Igreja Católica, citando a “Fides Damasi” afirma: “Deus é único mas não é solitário (n.254). O Amor, essência de Deus, comunhão essencial das Tres Divinas Pessoas, é o manancial e a origem da essência do homem e da mulher. Jesus, o Filho enviado pelo Pai, foi quem nos revelou e comunicou este mistério. Jesus viveu desse modo entre nós, deixando-nos através dos apóstolos os escritos de seus gestos e palavras.

Podemos então crer na encarnação do Verbo que revelou e comunicou ao homem e à mulher o Amor que faz dos Três comunhão. Como para o Verbo de Deus, o caminho para o homem e a mulher encontrar o Amor e ser o Amor é a “kénosis”, o esvaziamento de si, para ser para o outro por amor .
Este mesmo caminho foi percorrido pelo Senhor até à medida da Eucaristia. A Eucaristia é um abismo por demais grande de esvaziamento por parte do Senhor. A entrega deste mistério aos discípulos causou um grande escândalo. Alguns abandonaram definitivamente o Mestre. ”O’ res mirabilis” a chamou a piedade eucarística, porque no Calvário o Amor, que é Deus, já escondera a divindade de Jesus para poder estar próximo de cada pessoa. Na Eucaristia o Amor esconde também sua humanidade, fazendo-se “coisa” para poder estar perto dos seus em todos os lugares do mundo ao mesmo tempo.

Conclusão

Encerrando esse nosso percurso de hoje sobre a vida consagrada a cinquenta anos do Concílio, colho alguns pontos do caminho que fizemos para que sejam estímulo positivo para o nosso compromisso de consagrados e consagradas.

A experiência de Deus como Amor precisa voltar a ocupar o centro da vida consagrada, por isso, o carisma do fundador ou da fundadora deverá espelhar esse caminho do discípulo. A beleza de cada carisma deverá caminhar para ser visto como uma flor da Igreja que se insere no conjunto de muitas outras flores a cuja beleza se somará no mesmo jardim da Igreja.

Será preciso construir pacientemente a vida das comunidades concentrando todas as forças em viver a Palavra de Deus para depois comunicá-la aos irmãos e irmãs em forma de experiências vividas.

Caminhar de uma espiritualidade individual para uma espiritualidade comunhão (coletiva), reconstruindo as relações interpessoais à luz do mistério da Santíssima Trindade. Assumir, no espírito de comunhão, as estruturas de comunhão, que passam através dos conselhos nos vários níveis eclesiais e carismáticos de nossas famílias consagradas.

Aperfeiçoar pessoalmente a experiência dos conselhos evangélicos de pobreza, castidade e obediência. Entrar e saber permanecer nas chagas pessoais de nossas comunidades, da Igreja e da humanidade com o mesmo espírito de Cristo que grita seu abandono e sua entrega por amor. Crer no cêntuplo que o Senhor nos dá nessa vida e na vida eterna. Voltar a sorrir em nossa congregação, como expressão autêntica de nossa felicidade. Simplificar o caminho espiritual de comunhão, dando todo o valor possível ao momento presente de nossa vida: este é o único de que verdadeiramente dispomos.

Obrigado, irmãs e irmãos pela escuta e acolhida!!!

João Braz Cardeal de Aviz