Evangelizar no meio do povo eleito

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Missionária tanzaniana trabalha no Brasil há 14 anos. Neste artigo, reflete sobre os desafios e alegrias da Missão.

Por Carleta Gerard Longo

Meu nome é Carleta Gerard Longo, missionária da Consolata. Sou natural da Tanzânia, África. Há 14 anos vivo a minha missão no Brasil. Atualmente estou na periferia de São Paulo, capital do estado com o mesmo nome. Acompanho várias pastorais de comunidades eclesiais. Faço parte da equipe da Animação Missionária Vocacional do nosso Instituto no Brasil. É uma grande alegria para mim, como mulher africana, consagrada à missão, trabalhar no país onde 80% da população têm raízes na cultura africana. Estou convencida que Deus me chamou e enviou para partilhar o precioso dom que há em mim, a Consolação. Ser instrumento da comunhão e harmonia entre os 211,8 milhões de habitantes com suas diversidades culturais.

Sou grata e reconhecida pela influência dos antepassados na minha vida, minha família, a Congregação a qual pertenço das irmãs Missionárias da Consolata e a convivência com o povo de Deus nos vários campos de Missão que contribuíram para eu ser o que sou hoje. Sinto-me acolhida e amada pelo povo o qual Deus me confiou.

A realidade do Brasil me interpela a valorizar a minha cultura africana para poder incentivar os afro-brasileiros a estimar a cultura que faz parte de sua identidade. Os valores são impregnados em mim como é a família na sua visão ampla onde todos se sentem em casa. Os amigos também se tornam parte dela. O espírito de família faz parte da identidade do nosso Instituto Missionário e internacional.

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Diversidade é bênção

Abraçamos a diversidade de cada membro não como uma ameaça, mas sim como uma bênção e riqueza. O respeito pelos anciãos segundo a cultura africana vai além da idade cronológica. Eles são considerados sábios por experiências acumuladas ao longo da história. Eles devem viver uma vida exemplar para a família e sociedade. São também mediadores entre os vivos e os antepassados, por isso tem o provérbio que diz, um ancião que morre é uma biblioteca que queima. O povo na Tanzânia como também na África, de modo geral é alegre, acolhedor, respeitoso e resiliente.

Tem a capacidade de encarar os desafios cotidianos, não com o desespero, mas, com leveza, otimismo, tranquilidade e responsabilidade. Sinto que a missão de evangelizar é importante no libertar a pessoa na sua integridade. Olhar com compaixão esta realidade tão complexa, onde a maioria dos afro-brasileiros têm cicatrizes pela discriminação racial. Lembro-me de uma mulher negra partilhando comigo, afirmando “não é fácil ser mulher, negra, pobre e morando na favela” São vistas com preconceito diariamente, especialmente no campo do trabalho. Os negros buscam sobreviver optando pelo processo de branquitude para ter os privilégios dos brancos. Há que se conscientizar que a pessoa que desvaloriza ou nega as próprias raízes não tem passado.

De fato, o presente nasce do passado e todas as recordações do passado devem ser usadas para o crescimento do presente e projeto para o futuro. Sem esquecer-se de corrigir tudo aquilo que fere os valores humanos. Faço presente o saudoso Mwalimu Julius Kambarage Nyerere, primeiro presidente da Tanzânia. Dizia ele que a cultura é o coração de uma nação e a nação que não valoriza suas raízes culturais não é uma nação, mas sim uma junção de pessoas. Ele sempre lutou por igualdade e dizia, “os seres humanos são iguais e cada um deve ser respeitado”.

Desejava que os tanzanianos vivessem como irmãos e irmãs. Nyerere antes de morrer no Hospital de St Thomas na Inglaterra, dia 14 de outubro de 1999, deixou seus últimos conselhos para os tanzanianos, "eu deixei para vocês uma nação, unida e com paz, recomendo a vocês de amar este país com o amor que ama as mães de vocês". De fato os africanos, o seu modo de pensar e de viver não voltados para si, mas sempre em relação aos outros, “eu sou porque nós somos, como somos então eu sou”. Eu sou uma pessoa completa e íntegra na medida em que me relaciono com os outros.

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O desafio para mim como religiosa africana consagrada à missão no Brasil é superar a timidez no enfrentamento do racismo. Falamos que existe o racismo no país, mas, ao mesmo tempo se diz que ninguém é racista. Há também a crença de que o racismo nunca será eliminado porque sempre se adapta para sobreviver, e os seres humanos são primários demais para evitar diferenças superficiais nos outros. Há conformismo sobre o racismo de pensar que sempre foi assim ao longo da história e agora ninguém consegue mudar. Quero continuar tendo esperança de que somos todos responsáveis para combater a intolerância racial. Todos os batizados e todas as pessoas de boa vontade devemcompreender o valor de Sangue de Cristo derramado por todos sem excluir ninguém. Deus Pai de todos nós faz cair a chuva aos bons e cativos. Diante de Deus não existem muitas raças, mas sim uma única. Somos seu povo amado. "Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus’’ (1 Pedro 2:9). Olhar para o povo negro além da sua aparência e da sua pele. Buscar compreender e valorizar as crenças por meios dos seus símbolos, gestos de alguns ritos que têm matrizes africanas para entender o cerne da espiritualidade e cultura afro-brasileira, como a umbanda e o candomblé.

Evangelizar a partir da cultura de um povo é a nossa Missão!

* Carleta Gerard Longo, MC, é missionaria animadora vocacional em São Paulo, SP. Publicado na Revista Missões, Dezembro 2021.